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Delito de Opinião

O estado da arte da Ciência

João André, 31.10.16

No seu melhor a ciência deve procurar dar respostas a perguntas e, idealmente, descobrir novas perguntas que nos direccionem para novas áreas de conhecimento. A melhor forma de o conseguir é seguir o método científico. Analisar a pergunta, formular uma hipótese, testar a mesma e analisar os resultados. Tirar conclusões e repetir o processo. Nunca chegamos ao fim porque mesmo que os resultados confirmem perfeitamente a hipótese e respondam perfeitamente à questão, haverá sempre novas perguntas a responder.

 

Seguir simplesmente este processo é essencialmente inútil, há que disseminar a informação. De tempos a tempos são descobertos documentos de cientistas do passado que não se deram ao trabalho de publicar ideias ou resultados e que, se o tivessem feito, poderiam ter avançado o conhecimento numa determinada área por décadas. A forma ideal de disseminação de conhecimento é a revisão por pares, ou peer review no termo inglês mais em uso. Este método habitualmente funciona bem porque os revisores têm interesse em permitir apenas que a boa ciência seja publicada, dado que ajuda também os seus trabalhos.

 

No seu estado mais perfeito a revisão pelos pares é simples: um cientista (ou grupo) submete um manuscrito a um jornal, este pede a outros cientistas, com outras publicações no currículo, que examinem o mesmo e ofereçam as suas opiniões. Estas podem ser simples aprovações ou rejeições do trabalho na presente forma ou sugestões de correcções ou pedidos de esclarecimento. No final do processo, a palavra final é do editor do jornal, que habitualmente segue a opinião consensual e decide em que número o trabalho será publicado.

 

 

A reputação de um cientista é então medida pelo forma como essas publicações sáo vistas. A métrica mais comum é o número de citações. Há outras, mais complexas, que tentam também medir o impacto das mesmas (como o índice H) e ao mesmo tempo procuram reduzir o peso específico de certas disciplinas que publicam ou citam mais que outras. Isto cria disparidades entre as diversas disciplinas, especialmente na forma como são percebidas.

 

(Conto um episódio do meu doutoramento para exemplificar estas diferenças. De uma conversa com uma amiga a fazer o doutoramento em química, decidimos avançar com experiências complementares: ela faria a parte de química pura e eu tentaria desenvolver o processo. Passado um mês ela disse-me que já tinha o artigo escrito. Eu precisei de mais seis meses para começar a produzir resultados. Ela publicou 4 artigos de 4-5 páginas cada. Eu não completei o meu trabalho na área - outros aspectos mais urgentes intrometeram-se - mas um colega que prosseguiu com o trabalho publicou um único artigo de 20-25 páginas. Mesmo com a disparidade de competências - essa amiga é hoje uma investigadora altamente respeitada na sua área enquanto eu deixei a investigação - este é um caso típico das diferenças entre ciências puras e engenharias).

 

Isto resulta num sistema em que a pressão para os cientistas é a sagrada publicação de artigos como métrica da produção científica. A pressão para publicar é enorme e sobrepõe-se a tudo. Isto cria diversos problemas, começando logo por um ciclo vicioso: é necessário financiamento para fazer ciência e publicar mas é necessário ter publicações para obter financiamento. O resultado são artigos mais pobres, com os resultados espalhados ao longo de vários artigos, para aumentar artificialmente a "produção científica". Em tempos revi 4 artigos do mesmo grupo de investigação sob o mesmo tópico. Eram todos de qualidade suficiente para publicação mas apenas medianos. Se fossem condensados em dois ou mesmo um único artigo, poderiam ter sido artigos excepcionais, mas a pressão para ter muitos artigos sobrepôs-se a tudo.

 

Claro que o dia tem apenas 24 horas e não podem ser todas dedicadas a fazer investigação. Há que escrever os artigos e rever os artigos e reescrever os artigos. Há que escrever projectos para financiamento, revê-los, corrigi-los, melhorá-los, escrever novos projectos e tudo o mais. Há que fazer investigação também. E há que, na maioria das instituições de investigação que são também de ensino, ensinar. Isto para não falar nas tarefas mais mundanas: dormir, comer, passar tempo com a família e amigos, etc.

 

De todos estes aspectos, o pior pessoalmente é a forma como a vida familiar é sacrificada. Isto não é só mau para a pessoa, mas também para a investigação. Num mundo de forte pressão, a família é normalmente o refúgio e ainda estou para encontrar alguém que não me diz que é a família que dá estabilidade para aguentar o ritmo. O outro aspecto que sofre brutalmente é o ensino. Sendo que a maioria da investigação é feita em universidades, isso significa que a principal função das mesmas - a transmissão de conhecimento - é sacrificada.

 

O último aspecto que está a causar cada vez mais problemas é a forma como o financiamento cada vez mais recai sobre tópicos que tenham "aplicabilidade", ou seja, que possam ser transformados no curto prazo em soluções ou produtos que possam ser usados ou rentabilizados financeiramente. Isto sacrifica drasticamente a investigação fundamental, sendo que apenas tópicos "sexy" acabam financiados e sugam todos os parcos recursos existentes para este tipo de trabalhos. Se a investigação aplicada é obviamente importante, a investigação fundamental não o será menos, uma vez que abre novos horizontes. Na fronteira entre as duas está ainda a investigação que eu chamo de "transicional", uma vez que já não é fundamental mas ainda não é verdadeiramente rentabilizável. Exemplos disto são as células fotovoltaicas (até muito recentemente) ou os biofuéis de segunda e terceira gerações. São casos de situações em que os fundamentos são bastamente conhecidos mas ainda não optimizados o suficiente para serem rentabilizados, necessitando de dinheiro público para ser explorados.

 

O resultado de tudo isto é uma investigação feita à pressa, onde o dinheiro disponível estagna perante o aumento de investigadores, com investigadores mais velhos a beneficiar assimetricamente de fundos (por terem melhor "track record", e onde a própria investigação sofre de falta de qualidade, pressa e falta de supervisão e verificação (os artigos que verificam resultados são ignorados em favor de investigação "original"). A isto acresce o decréscimo de qualidade no ensino e uma pior vida pessoal para investigadores. Para cúmulo, nada disto resulta necessariamente em melhor Ciência em geral, porque uma cada vez menor proporção dos recursos seguem para a investigação fundamental que abre novas perspectivas.

 

Uma vez que a maioria dos rankings internacionais de universidades tem como métricas fundamentais a "produção científica" (essencialmente o número de artigos e as citações), a proporção de investigadores para estudantes (o que estimula a cumulação dos mesmos),  o rácio de artigos por investigador (estimula a publicação apressada), ou o rácio de financiamento privado (que é desmesuradamente orientado para a aplicabilidade de curto prazo); as universidades tendem a favorecer medidas que promovam essas métricas em desfavor de outras (a qualidade de ensino é muitas vezes medida por métricas que repetem o ênfase em publicações) e perpetuam o problema.

 

Pessoalmente preferiria um regresso parcial ao período em que a principal função de uma universidade era o de preparar profissionais, isto é, ensinar. Como não podemos (nem devemos) influenciar a forma como os privados distribuem os seus recursos, a única forma de continuar a garantir uma investigação de maior qualidade seria por intermédio de financiamentos estatais (ou internacionais) que seguissem lógicas de avaliação dos méritos do projecto diferentes do simples recurso à publicação de artigos.

 

Há alguns sinais interessantes. A proliferação de jornais de acesso público (onde se paga para publicar e a qualidade acaba portanto por ter que ser mais cuidadosamente controlada) começa a ter efeitos benéficos. Alguns fundos públicos começam a oferecer financiamentos iniciais para explorar uma ideia, mesmo que a sua aplicabilidade seja ainda desconhecida. No entanot muito mais poderia e deveria ser feito. Por um lado com o financiamento directo, por outro estimulando formas alternativas de financiamento e de avaliação. Não tenho soluções (se as tivesse, escreveria), mas sei que a investigação, como está, não segue um caminho que me agrada particularmente.

 

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