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Delito de Opinião

O dramalhão patético

José Meireles Graça, 13.11.23

Sobre o caso do mês e talvez deste ano e do próximo faço umas reflexões colocando-me deliberadamente à margem da alegria das hostes anti-costistas, e da tristeza das viúvas socialistas, que trocaram posições desde que se conheceu hoje de tarde a decisão do Juiz de Instrução, que não prendeu ninguém nem comprou boa parte das teses exaltadas do Ministério Público. O texto é, para os meus hábitos, extenso, e como há matérias de índole jurídica sugiro aos especialistas do ramo que não me venham torrar a paciência com alguma falta de rigor hermenêutico, ou inexactidão descritiva, ou qualquer outra das maravalhas que os juristas costumam usar para excluir os leigos de considerações sobre a sua especialidade.

A floresta jurídico-penal procura, com respeito da consciência social que considera como ilícitos certos actos e comportamentos, casar a probabilidade da prática de crimes com os direitos dos suspeitos e arguidos deles.

Uns valorizam mais a probabilidade daquela prática, e por isso ligam muito a indícios e raciocínios neles fundados e menos a provas; e outros muito a provas e pouco a suspeitas. Os primeiros entendem que o risco de condenar inocentes deve ceder o passo ao de culpados à solta; e os segundos ao contrário, isto é, não se incomodam que não haja sanções para quem, segundo a nossa experiência de vida, é provavelmente um patife, mas sobre cuja culpabilidade não foi possível reunir provas concludentes.

O nosso ordenamento jurídico pende, como na generalidade do Ocidente, para a segunda; a clientela ordinária dos cafés, os choferes de táxi e certos partidos políticos para a primeira; e a parte politizada da opinião pública para uma ou outra consoante quem esteja em palpos de aranha.

Não é um acaso que as garantias de defesa e certeza jurídica sejam o culminar de um longo processo iniciado, no que toca à certeza, se não estou engando, com o código de Hammurabi, e, no que toca ao resto, num calvário que a História do Direito descreve. A isto se chama civilização e quem precisar que se lhe o explique não está em condições de entender a explicação.

Assim tão simples? Não. Na prática raramente as coisas são tão nítidas, e não o são também no espírito dos magistrados, que são pessoas como as outras.

Pessoas como as outras? Quer isso dizer que, tendo a maior parte de nós um pequeno ditador dentro de si que só espera a oportunidade ou as condições para impor aos outros as suas convicções, crenças, manias, regras de comportamento e mundividências, aqueles também são assim?

São, nunca se inventou um sistema que garantisse que o acesso à condição de magistrado estivesse reservado a sábios com um par de asas nas costas. E como tal invenção não é possível foi-se criando um corpo extenso de regras e garantias imperativas que tentam realizar a administração da Justiça dentro dos parâmetros que o legislador, e a civilização, estabeleceram.

O conhecimento dessas regras, e dos valores que servem, chama-se consciência jurídica, e dela são depositários os juristas.

Aquela consciência, a imparcialidade (por ausência de interesse pessoal no desenlace dos casos), a independência face a poderes, incluindo o da opinião pública, a irresponsabilidade, isto é, o não poder sofrer sanções pelas decisões, a opinião dos pares, e a revisão por instâncias superiores, são o que garante que os juízes não estão ali para conformar o mundo da forma que cada um deles estimaria desejável.

Coisa de humanos, por isso imperfeita. Mas que, entre nós, funciona: as acusações da outra variedade de magistrados, os do MP, frequentemente caem em julgamento, e às vezes logo na instrução.

É aqui, nesta outra variedade, que temos a burra nas couves. Porque enquanto os juízes são passivos, isto é, julgam e têm de julgar solitariamente o que lhes é distribuído, os magistrados do MP não são: superintendem na investigação e decidem propor ou não acusações e medidas de coacção. Isso faz com que, noutros países, a sua acção não seja independente, antes sujeita a uma hierarquia cujo topo último é o Governo, por se achar que se a separação de poderes implica a independência dos juízes, essencial num Estado de Direito, a actividade do MP é caracteristicamente secreta e a acção penal pertence ao poder executivo.

Semelhante arranjo, se importado para Portugal, daria como fatal resultado a roda livre da corrupção porque estaria a raposa de guarda ao galinheiro. É que a nossa tradição cultural é a de olhar com complacência a corrupção, ainda que também com vingativo desprezo os que são apanhados. Disto é prova a tranquila eleição de plausíveis corruptos e a consagração da expressão “rouba mas faz”, mas também a grande satisfação quando alguém aparece oficialmente como indiciado ou acusado, caso em que de imediato se reclama seja trancafiado, atirando fora a chave, e se aplaudam magistrados justiceiros e ferrabrases como o celebrado Alexandre.

A figura do juiz de instrução foi a solução encontrada para casar a protecção dos direitos de investigados, indiciados, acusados ou o que seja, isto é, quem é incomodado na sua vida com intromissões, diligências, limitações e miuçalhas policiais, eventualmente prisão, com as necessidades de investigação.

É uma figura equívoca: Nem é bem um juiz (não julga nem condena com o mesmo formalismo de um verdadeiro julgamento), nem é um polícia, nem superintende na investigação, nem goza do mesmo respeito da opinião pública pelo tribunal, que o vê como fazendo parte do aparelho que acusa as pessoas e não do que as pode absolver.

Mesmo assim, e porque não existem sistemas perfeitos, este poderia continuar se funcionasse. Mas a presente hecatombe, que derrubou o Governo e antecipou eleições, mostra que não pode porque, ainda antes de qualquer decisão, já estão na praça pública reputações destruídas que dificilmente serão reparadas e já, num sentido ou noutro, a disputa eleitoral ficou inquinada.

Sejamos claros: O PS criou um emaranhado tal de leis, serviços públicos, autoridades e poderes, que o tipo de investimento objecto destas convulsões (um mega-centro de dados de não sei quê, para já; umas trapalhadas sobre lítio e hidrogénio a seguir) nunca seria possível sem facilitações, arredondar de cantos, atropelos sortidos e oleamentos vários. É aqui que entram os advogados de negócios, os conhecidos e amigos, os almoços, os telefonemas, as legislações apressadas e toda a parafernália de historietas que compõem este mega-escândalo, para já, de pacotilha.

Pergunta-se: Quem quer licenciamentos para investimentos de muito menos impacto não encontra, com diferença de grau, a mesma parede burocrática e reguladora, o mesmo arrastar de pés, os mesmos decisores lerdos e inimputáveis, estúpidos uns, teimosos outros, a mesma legislação hiper-reguladora exigida por grupos de pressão ambientalista e engenheiros sociais sortidos?

Há nisto tudo uma justiça poética: O mesmo PS que, a golpes de Decreto-Lei e agências governamentais, quer fazer dos empresários uns santos woke, é apanhado quando decide, através dos seus dinâmicos ministros, dar uma de capitão da indústria fazendo “uma nova Autoeuropa”.

Autoeuropa? É boa, se fosse o PSD que estivesse há tanto tempo no Poder as coisas seriam, neste particular, muito diferentes? E a mesma satisfação impante que até hoje se notava nas minhas hostes porque nos tínhamos livrado (se tínhamos) finalmente de Costa não seria a que faria rejubilar a turba esquerdista se amarrado ao pelourinho estivesse uma qualquer nebulosa de próceres daquele partido?

Portugal é um país de tolerância tradicional para com a corrupção, disse acima; e de influência determinante do Estado na condução da economia. Estas duas coisas fazem com que casos como o que por estes dias anda vertido a conta-gotas para os jornais sejam uma fatalidade.

Pode-se acreditar, se se for ingénuo, que os valorosos esforços do MP acabarão por limpar da vida pública todos os miasmas. Mas não: os métodos de comunicação, e os processos, é que serão diferentes: no caso, menos chamadas telefónicas, mails e uotessápes, e mais encontros pessoais discretos e criação de agências específicas para determinado projecto, com poderes majestáticos.

Mesmo assim, se o problema fosse apenas o esgrimir contra moinhos de vento, valeria a pena: afinal, o combate ao crime é para o conter, não para acabar com ele porque isso não é possível. Sucede porém que não só o Ministério Público se tem revelado incapaz de desempenhar satisfatoriamente o seu papel (o caso Sócrates está aí para demonstrar que a criação de monstruosos monumentos acusatórios intratáveis constitui, na prática, denegação de justiça) como, desta vez, tudo leva a crer que deu, ainda mais do que anteriormente, um passo maior do que a perna. Como disse a uma pessoa amiga que me inquiriu:

A julgar pelo que se sabe, que há aqui? Uma floresta de dificuldades legais, administrativas e de multiplicidade de organismos, todos a arrastar os pés, que tornam impossível a realização de qualquer projecto desta natureza sem "agilizações". Que uma empresa contrate um advogado bem relacionado para olear as coisas, e que esse oleamento implique vários cortar de cantos e almoços pagos pela empresa (coisa a que os procuradores ligam aparentemente muita importância) é quase cómico. E um patético presidente da Câmara reclamou uns donativos insignificantes para instituições da terra, credo, e um possível apoio do PS para uma eleição, para pressionar uma vereadora recalcitrante. Crimes, tirando o dinheiro encontrado no gabinete do chefe de gabinete (que talvez tenha e talvez não tenha a ver com estas trapalhadas) e uns procedimentos suspeitos na redacção e publicação de diplomas ordenacionais e legais, não vejo sombra de nenhum. O MP provocou uma hecatombe que vai resultar em nada, se o que há é apenas o que aparece nos jornais e no comunicado da PGR. O pano de fundo disto é o Estado excessivamente regulador, os políticos que têm a mania que são empresários com o dinheiro do contribuinte e a Administração Pública lerda. Problemas de natureza política, que deveriam estar fora da alçada destes hiper-legalistas com mais poder do que o que usariam se tivessem consciência da sua ignorância do mundo real.

De modo que, quando assentar a poeira, algum mecanismo se terá de encontrar para excluir da arena política o Ministério Público, onde não tem de estar, sem com isso se correr o risco de que verdadeiros incidentes de corrupção (que, nesta fase, já caíram)  deixem de ser perseguidos e punidos.

A quadratura do círculo? Se para isso contarmos apenas com magistrados, advogados, juristas, funcionários judiciais e sindicalistas, impossível. Que todas as reformas foram feitas por esses especialistas, dada a complexidade e hermeticidade do assunto, e falharam. Falharam, com perdão da imagem, porque não é razoável contar apenas com os porcos para reformar o chiqueiro. Sempre faltou senso, conhecimentos de organização e métodos, distância e ausência de interesses corporativos. De modo que é a vez de, por exemplo, economistas, pessoas que por não terem o halo conferido pela missão de julgar os outros são mais humildes, têm alguns conhecimentos de gestão, não têm a cabeça formatada em juridicidades ocas, conhecem as quatro operações aritméticas e têm noção dos métodos para atingir certos fins, estão particularmente vocacionadas para este efeito, regulando, por exemplo, a prática do lobismo e remetendo os juristas para o papel adjuvante de conselheiros, não decisores de reformas.

O que não é razoável é consentir, porque desta vez as vítimas são os outros, ou aqueles, que a carreira política venha a ser apenas uma coutada dos que estão dispostos a, com imprudência e azar, correr o risco de ver a vida destruída se não conseguirem provar a um magistrado que têm um par de asas nas costas.

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