O Discurso do 10 de Junho (2)
Acordo antes das 3 da manhã. Insone, mas estremunhado. Tanto que não consigo ler - nem o Integral 1 de Gil Jourdan com que me estou a deliciar. Coisas da idade, pois, como todas as manhãs, acordo de olhar embaciado, precisarei de trocar de óculos, está ... visto. E por isso, até porque a noite ainda será longa, trago o computador para a cama, coisa rara. E percorro o FB, passatempo que sonho soporífero. Nisso noto que lá longe, na Pátria Amada, imensa gente comenta o discurso de João Miguel Tavares nas cerimónias do 10 de Junho. Muitos encómios, dextros. E muitos apupos, canhotos. Tantos são estes que procuro o que também diz aquela gente que não está nas minhas ligações, os veros sinistros canhotos - os "conhecidos", administradores não executivos, bloguistas jugulares, deputados filósofos, esse malvado cerne nunca-ex-socratista. Estes pateiam, em uníssono e com vigor, o discurso do colega de Ricardo Araújo Pereira. Como tal vou ouvir o que o homem disse. E reconheço-lhe a argumentação, lembra-me outro discurso de 10 de Junho, um que fez época, e há bem pouco tempo.
Na alvorada blogo sobre o assunto, o postal O Discurso do 10 de Junho. Aludo ao discurso de João Miguel Tavares e ao repúdio socialista que gerou. Um discurso que foi muito lido: o "Observador" anuncia que foi um texto imensamente partilhado (a esta hora que escrevo o sítio desse jornal anuncia 41 mil partilhas do texto). No discurso de Tavares reconheço o que há poucos anos outro convidado disse. Quase sem tirar nem por. E cito-o, deixando ligação para o seu texto, identificado na origem, mas deixando entender que se tratam das palavras de João Miguel Tavares - de facto são ... quase. Trata-se do discurso de 2012, de António Sampaio da Nóvoa. Que então foi apupado pelos apoiantes do governo em exercício - diga-se, com honestidade, que Nóvoa fez uma crítica ao "estado da arte" mas elidiu o processo que conduziu à penosa situação de então, um caso típico do "com a verdade me enganas". E deu-lhe também um tom corporativo, defendo a universidade, coisa legítima mas apoucando a abrangência da análise.
Mas o relevante é que então foi completamente sufragado, aplaudido, pela oposição, pelos socialistas em particular - tanto que o então reitor acabou por ser o efectivo candidato presidencial do Partido Socialista, aquele discurso foi-lhe trampolim para uma (efémera) participação política mais explícita. Repito, hoje de madrugada citei-o sem referir o autor, e deixando entender que eram as palavras de Tavares, mas com ligação para o texto original, que tem no cabeçalho a identificação do autor:
"Portugal conseguiu sair de um longo ciclo de pobreza, marcado pelo atraso e pela sobrevivência. Quando pensávamos que este passado não voltaria mais, eis que a pobreza regressa (...) Começa a haver demasiados “portugais” dentro de Portugal. Começa a haver demasiadas desigualdades. E uma sociedade fragmentada é facilmente vencida pelo medo e pela radicalização. (...) não façamos, uma vez mais, o erro de pensar que a tempestade é passageira e que logo virá a bonança. Não virá. Tudo está a mudar à nossa volta. E nós também.
Afinal, a História ainda não tinha acabado. Precisamos de ideias novas que nos deem um horizonte de futuro. Precisamos de alternativas. Há sempre alternativas. (...) A democracia funda-se em coisas básicas e simples: igualdade de oportunidades; emprego para os que podem trabalhar; segurança para os que dela necessitam; fim dos privilégios para poucos; preservação das liberdades para todos. (...) os sacrifícios têm de basear-se numa forte consciência do social, do interesse coletivo, uma consciência que fomos perdendo na vertigem do económico; pior ainda, que fomos perdendo para interesses e grupos, sem controlo, que concentram a riqueza no mundo e tomam decisões à margem de qualquer princípio ético ou democrático. É uma “realidade inaceitável”. (...)
Estas palavras, a reflexão sobre os problemas estruturais portugueses, são, de outra forma, com outra ênfase porventura, aquilo que agora Tavares anunciou. A parecença é tão grande que durante o dia - tendo eu publicado no meu blog "O Flávio" e no colectivo Delito de Opinião, assim abarcando cerca de 2000 visitas - ninguém apontou ou protestou a disparidade autoral. Mesmo tendo o texto de Tavares sido tão partilhado. Mesmo tendo eu posto adenda ao postal (e também no facebook), apelando a que se lesse o texto original - assim percebendo a diferença autoral. Só agora, já noite longa, um comentador anónimo surge, irónico, num "vai-se ver foi o do outro. Boa partida". Mas não é uma partida ...
Na época, há sete anos, no olho do furacão da crise, o diagnóstico de Sampaio da Nóvoa sobre a situação estrutural portuguesa foi aplaudida pelos socialistas, com enorme empenho. E agora, declarações tão similares, tão confundíveis - prova-o o meu postal -, são vituperadas, pelos videirinhos e seus apoiantes. Isto apenas mostra uma coisa. Há gente, imensa gente, que só está interessada nos seus cromos, na sua colecção. Apoiar o "nosso" Sampaio da Nóvoa, apupar o Tavares "deles" (e também o contrário). O país?, a tal "Pátria Amada"? Que se lixe.
É óbvio que temos que dançar, nus. Para crescermos. Para transitar de etapa. E é ainda mais óbvio: os videirinhos não servem para essa dança.