O dia em que a nossa vida mudou
Cumprem-se agora dez anos sobre o dia em que o mundo mudou. O massacre aéreo de Manhattan obrigou-nos a todos – a começar pelos americanos – a perceber que vivemos num mundo global e que o mal não acontece só aos outros. Não foi o primeiro nem o último massacre da História da Humanidade – mas foi o primeiro que visou uma civilização. Não nos equivoquemos: o ataque às Torres Gémeas não era dirigido contra os americanos, nem contra os judeus, nem sequer contra o capitalismo. A Arábia Saudita é um exemplo rutilante de como o islamismo radical convive santamente com o mais sofisticado capitalismo. Americanos, judeus ou não, tal como os europeus têm em comum a cultura da liberdade, da igualdade e da democracia – foi essa cultura que a Al Quaeda pretendeu dizimar, com a matança de civis, que aliás repetiu em menor escala em Madrid, a 11 de Março de 2004.
O 11 de Setembro tornou impossível a neutralidade; as posições ideológicas que, desde o fim do Muro de Berlim, boiavam num caldo morno de «humanismo» indiferenciado, tornaram-se quentes e vibrantemente opostas. O chamado multiculturalismo sofreu vários processos de filtragem e reflexão: serão todas as culturas de facto equivalentes? Haverá valores universais a defender? Onde ficam os limites da tolerância? Desenvolveu-se uma extensa literatura sobre estes temas, que se repartiu entre a condenação dos perpetradores e a condenação dos Estados Unidos – a literatura do «eles estavam a merecê-las», como me disse alguém com quem cortei relações. Não há forma de sustentar uma conversa quando o interlocutor sustenta que determinados «eles» merecem ser assassinados – ainda por cima, quando os «eles» são indiscriminados. Para muitos de nós, Setembro de 2001 significou uma revisão intensa e dolorosa de afinidades electivas.
Entendi então com nitidez que há princípios básicos que unem e separam as pessoas, para lá das diferentes visões do mundo e simpatias ou filiações partidárias. A raiz desses princípios é o amor – ou esse particular traço do amor a que se chama compaixão, isto é, partilha da paixão alheia. Emmanuel Lévinas, cuja obra ecoa cintilantemente sobre o silêncio do horror nazi, define a ética como um «acontecimento», um «desfalecimento do ser em humanidade» através do súbito encontro de um rosto. O rosto inesperadamente humano do inimigo com que esbarramos no campo de batalha, por exemplo. Mas esse encontro ético é uma intermitência, um afluxo de sangue cuja surpresa pode ser – e foi-o, no caso do holocausto dos judeus – antecipadamente extirpada. O que se passou no nazismo como no estalinismo foi a total objectivação do outro. O outro tornou-se, simplesmente, coisa. Coisa que estrebucha, ou sangra ou grita, como um autómato à experiência, nunca como ser humano.
No século XIX, Tocqueville verificava que «cada um só vê o seu semelhante nos membros da sua casta». No século XXI, observamos que a má-consciência leva muitos a encontrar o seu semelhante apenas e só naqueles que o querem aniquilar. Negar a existência de uma guerra é prolongá-la – e, por mais que se pretenda o contrário, ser conivente com uma das partes. O 11 de Setembro mostrou a diferença entre uma cultura que reconhece a dignidade dos seres humanos e outra que não reconhece senão a sua vontade de mando – e que não reconhece os outros como seus iguais, nem olha a meios para atingir fins. Não são visões equivalentes: uma é pela vida, outra é pela morte. Há coisas que são barbaramente simples.
( crónica publicada no semanário Sol a 9/9/2011)