Saltar para: Post [1], Comentários [2], Pesquisa e Arquivos [3]

Delito de Opinião

O comentário da semana

Pedro Correia, 09.06.19

«Tenho muitas memórias, quer da infância, quer da juventude, mas todas elas muito dispersas, sem qualquer tipo de aglutinante integrador que lhes proporcione um sentido da redacção, quanto mais do conto. Mas qual conto? Isso é uma coisa de Autor. Eu sou só um mau leitor, tardio, que vivi a minha infância nos idos anos em que a escola era bem estimulada pela severidade, para lhe não chamar outra coisa, e que não estimulava a criatividade. As férias grandes eram de três meses e meio e, por compensadora coincidência ou não, aconteciam no período do ano dos dias intermináveis, para nossa sorte, embora sempre nos parecessem pequenos, demasiado pequenos para tudo o que desejávamos fazer, incluindo todas as brincadeiras da rua, do monte (ia dizer bosque, mas esta palavra, bosque, assim como charneca, são já tardias, oriundas das leituras da Enid Blyton), junto ao bairro, e dos campos, que percorríamos alegremente, ao longo dos caminhos sinuosos por entre eles até ao rio. Na verdade era um ribeiro, mas que para crianças era um grande curso de água, onde tomávamos longos banhos naquela água corrente quase gélida, mesmo sendo o Verão, sem qualquer tipo de controlo parental nem salva-vidas. Tivemos sempre connosco o nosso anjo-da-guarda.

Não havia, pois, tempo para leituras. Isso era coisa de adultos que não tinham que fazer, estavam permanentemente ocupados com tarefas inúteis, e sempre que se juntavam, passavam horas a fio a falar de assuntos estranhos e enfadonhos. Nós, crianças, ocupávamo-nos de coisas realmente pertinentes, tipo brincar na rua livremente, a tudo quanto um espaço quase sem carros nos permitia fazer, e éramos muito ruidosos, mas o ruído feliz que ainda hoje me faz imobilizar quando me encontro próximo do recreio de uma escola, o único local onde agora se pode presenciar as crianças a brincarem em turbamulta.

 

com-f04-00728-ic_1280x720_acf_cropped.jpg

 


Ainda me lembro da carrinha em chapa canelada que estacionava periodicamente, sempre no mesmo sítio do bairro e abria as portas e a pala lateral, expondo as suas estantes interiores pejadas de livros, bem iguais aos da estante da sala de estar que estavam lá em casa e que só o pai lia, talvez também para nos tentar estimular à leitura, embora julgo nunca o ter conseguido, pelo menos comigo. Com os meus filhos, tive que ser bem mais activo na mobilização para a leitura e mesmo assim só consegui um sucesso parcial.
Por isso, minha cara Maria, a leitura, está, e ainda bem, hoje ao alcance de todos, mas a escrita é uma arte só bem dominada pelos que tratam os livros por tu desde tenra idade, o que não é de todo o meu caso. Voltei a ler o seu texto. Eu sabia que ele me tinha lembrado um livro, muito bonito de resto, o "dicionário dos lugares imaginários" do Alberto Manguel, onde cabem, pelo menos parcialmente, todos os livros de ficção presentes em qualquer estante.»

 

Vítor Augusto, neste texto da Maria Dulce Fernandes

9 comentários

Comentar post