Saltar para: Post [1], Comentários [2], Pesquisa e Arquivos [3]

Delito de Opinião

O carrilhão

jpt, 25.02.23

jimmy.jpg

Custou-me mas já me habituei a isto de o corpo se ir tornando menos capaz - ainda que por vezes me surpreenda com alguns cometimentos havidos. Mas sim, foi-se impondo isto do calcanhar resmungão se em longas caminhadas, do arfar de fumador durante as escadarias, do esvaecer dentário, talvez pior ainda esta breve hesitação ao despertar, e mesmo do adormecer no sofá enquanto o Sporting joga, da parcimónia loquaz, já para não falar da crescente frugalidade à mesa - que a essa vou disfarçando com paleios gastronómicos - e até outras, próprias ao sossego desencantado do celibato perpétuo.
 
Mas que a mente feneça, no primado da desconcentração e, mais sonante ainda, na atrapalhação da memória? São muito mais assustadores os sinais, sinto-os como temidos sintomas. Nem digo isso de esquecer o nome do filme distraidamente visto na véspera, coisa normal desde há muito, ou do título do livro diante do "o que é que estás a ler?", pois faço-o a vários ao mesmo tempo, sei lá o que responder... Mas esquecer pessoas, não as reconhecer? A aflição instala-se.
 
E ontem foi dia disso, do primado da angústia. Atrevera-me a investir a Norte, cruzando o estuário, com o intuito de ouvir uma conferência de alguém que me foi marcante. Esperei o início da sessão esfumaçando no adro. E nisso um tipo avançou para mim, saudando-me num sorridente "como está, professor?" - e eu atrapalhando-me, incapaz de o situar para além da sua assim óbvia nacionalidade. Passei eu 15 anos a leccionar anunciando, mas também gabando-me, que "fixo as caras mas não consigo recordar os nomes de todos!", algo nada desrespeitoso quando se têm sucessivas levas de dezenas ou centenas de alunos por semestre. Mas agora, naquele malvado ontem, tudo se desvanecendo - e só face ao seu nome, muito peculiar se ouvido em Maputo (pois de matriz Shona, se se quiser facilitar) me veio à memória.
 
Mas pior se seguiu. Indulgente, e nisso sorridente, o simpático antigo aluno agora cá estudante conduziu-me até a uma sua professora, que ali o acompanhava, a qual também desconheci, para seu espanto, pareceu-me vislumbrar. E para meu pavor imediato, pois confrontando-me com ser a senhora não só minha colega, que conhecera há meia dúzia de anos, como também mulher muito bonita - e não me venhais com apodos avessos àquela "heteronormatividade tóxica", paleio que é desses "rebeldes com causa" que nada mais são do que amanuenses do intelecto, pois sempre tendi (e nisso não vou nada sozinho nem malévolo) a mais recordar a formosura impressiva do que a mediania, por até injusto que isso possa ser.
 
Enfim, lá me sentei para ouvir a palestra. Acabrunhadíssimo, na dolorosa consciência de que não só já esqueço os antigos alunos como também as senhoras bonitas. O carrilhão da Angústia soava a rebate no anúncio da senilidade...
 
Bem mais tarde sobre isso conversei com a Margot, e terá sido ela que invocou Churchill: estarei a viver o "fim do princípio". E seguiu-se a insónia.
 
(Postal no meu Nenhures)

14 comentários

Comentar post