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Delito de Opinião

O campeão da manha

José Meireles Graça, 01.07.20

Ultimamente tenho dado comigo a simpatizar com o nosso PM.

Calma, não mudei de opinião: o homem tem sobre o país, a economia e o mundo meia dúzia de ideias (e mais não seria preciso, se elas fossem boas), todas erradas, e isso no seu lado substantivo. No adjectivo, isto é, no feitio, no carácter, na cultura, nos modos, até mesmo na toilette, também não melhorou nadinha.

Por partes: Na luminosa cabecinha dos dirigentes do PS o país nasceu em 1974, titubeou à procura de amparo até 1986, sentou-se à mesa dos ricos em 1992, numa festa por multas para a qual contribuiu com boa disposição e anedotas, e é ocioso pensar nele fora do “quadro” da UE, da qual vem a chuva e o bom tempo. E continuará a vir até, quando chegarmos ao eldorado de uma federação, ficarmos com o mesmo estatuto que o Arkansas nos EUA, mas com óptimas praias que aquele infeliz Estado não tem, como dolorosamente lhe falta também o galo de Barcelos, os pastelinhos de Belém e uma quantidade adequada de dentistas e empregados de mesa.

O Arkansas já forneceu um Presidente e é justamente famoso pelas suas melancias. A comparação deixa a desejar pelo lado das cucurbitáceas mas resulta vantajosa no confronto entre Durão Barroso e Clinton – o primeiro nunca foi embaraçado, que se saiba, com histórias picantes em torno de charutos apagados. É porém um dos Estados mais pobres da União, e nada indica que venha a deixar de o ser. Esse destino ser-nos-á poupado, acreditam à volta de 90% dos 14 milhões de portugueses vivos, entre residentes e expatriados, pelo efeito do princípio dos vasos comunicantes aplicado à riqueza, que não se verifica em lado nenhum mas os europeístas, e Costa com eles, dizem que terá miraculosamente lugar aqui na Ibéria.

Quanto à economia, acha que a tal riqueza cresce pelo efeito de se a dividir por um número crescente de dependentes do Estado, desde que este se encarregue, baseando-se nas opiniões dos ungidos por diplomas das madraças de economia socialista, de fazer aqueles investimentos de grande rasgo e lucidez que um destes séculos porão o país a liderar o mundo nisto e naquilo, nos intervalos de falências periódicas.

O mundo de Costa é o da UE e logo a seguir o da ONU, onde o mestre de cerimónias é o seu colega e luzido estadista Guterres. Portugal está sempre do lado dos bons, isto é, aqueles sempre prontos a tomar medidas para combater as alterações climáticas, a desigualdade entre os antigos sexos, hoje géneros, e entre ricos e pobres e o Norte e o Sul, o imperialismo israelita, a América de Trump e o Brasil de Bolsonaro, a injustiça numa palavra.  Desde que tal combate se faça unicamente nas sociedades onde se pode fazer, isto é, no Ocidente; nas outras não, que deixaria evidente a horrível ideia de as civilizações não serem todas equivalentes.

Para quem ache que o que se deve procurar num político é o mesmo que se deseja para a namorada, o sogro, a nora, o amigo ou o sócio, isto é, para quem determine o seu voto não por ideias mas pelos sinais exteriores do feitio, Costa não serviria se o eleitor se incomodasse com a naturalidade e frequência com que mente, o português sumário em que se exprime, e até mesmo as farpelas com que se atavia quando decide ser natural. Mas não incomoda e, de toda a evidência, a sua popularidade deve muito ao andor em que a comunicação social beata e comprada o carrega e, sobretudo, aos bodos judiciosos que distribuiu pelo maior número possível de dependentes. Nada que não possa ser revertido – o seu antigo patrão Sócrates também foi um menino de ouro até dar com os clássicos burros na água.

Sucede que este homem tem a fina inteligência dos sobreviventes, que é mais adequadamente descrita como esperteza (transformou uma derrota numa vitória, comprou com mestria apoios inesperados, quebrou tradições da sua igreja partidária dando a impressão de fidelidade aos santinhos da congregação, apoiou-se nos serviços de um hábil vigarista que já despediu e recompensou, dominou competentemente uma comunicação social que conseguiu se demitisse completamente das suas funções) e foi até agora bafejado pela sorte, que porém acabou com a chegada da maldita Covide.

O país fez, para lidar com o problema, o que faz sempre – copiou. E como por toda a parte (salvo na Suécia e pouco mais) a receita consistiu primeiro em conseguir que as unidades de cuidados intensivos não fossem inundadas de casos que lhes ultrapassassem as capacidades (o achatar da curva) mas rapidamente evoluiu para a esperança louca de estrangular a pandemia com o prolongamento e endurecimento de medidas de isolamento, Costa foi obrigado (acredito que a contragosto – é o meu palpite) a acompanhar. Portugal não é hoje, e de há muito, um país independente, nem dispõe de qualquer autonomia face ao que decidem os directórios europeus, mas cabe notar que de qualquer modo a economia levaria sempre um grande tombo, qualquer que fosse o mix de políticas adoptadas, por causa da quebra do turismo e da exportação.

De modo que o pobre Costa deve ter visto há muito (antes da camarilha acéfala de que se rodeou, que anda aliás a dormir) o terreno a fugir-lhe debaixo dos pés e apostou as fichas no maná europeu (que vai espatifar, a esperteza não chega para ter um ataque de clarividência em economia, nem ele pode vir dos gurus da especialidade), no desconfinamento e na propaganda.

Daí o ataque de fúria na famosa reunião no Infarmed. A ministra Temido julga que a alhada em que estamos metidos é a da Covide, que das galinhas sem cabeça que pontificam na matéria, isto é, médicos de especialidades várias, virá alguma solução que preste, e que a máquina da Saúde pública, as polícias, a patética DGS, o stop-and-go de medidas em que com habilidade se transfere a responsabilidade das políticas públicas para os comportamentos individuais, são necessárias e suficientes para estancar o desastre.

Mas não são. O problema, antes de outra coisa qualquer, sempre foi de engenharia (como diz um amigo meu, dono de uma excelente cabeça, ainda que lá não more um jota de ciências sociais, particularmente história, que sobranceiramente despreza), isto é, de meios e organização para lidar com ele. Ora, a administração pública portuguesa nunca se distinguiu pela eficiência; o SNS sobrevive com crónica falta de meios, que foram desviados para comprar votos; a elite política, que é quem decide, calha ser socialista, ou seja, farinha do mesmo saco da massa ignara dos governados; e para limitar os estragos convinha falar cada vez menos da doença e cada vez mais da recuperação, o que é difícil porque o génio histérico que saiu da lâmpada agora não quer lá regressar.

Tudo leva a crer que isto vai acabar mal, e não me refiro à doença, que se vai juntar ao catálogo das outras com as quais um certo número de pessoas de idade se passa todos os anos para o outro lado, mas à economia.

Sócrates lixou-se não por causa das suas roubalheiras, que nunca teriam sido denunciadas se o país não tivesse falido, mas pela vinda da troica. E o mesmo eleitorado, que lhe deu vitórias e agora lhe dá desprezo, está aí pronto para crucificar quem esteja ao leme quando o desemprego subir sem subsídios e quando a austeridade não puder ser mais disfarçada com expedientes.

De modo que o homem, com uma mão de cartas baixas díspares, está a fazer das tripas coração porque vê o monte das fichas a diminuir e pergunta a si mesmo se, com o galo com que está, conseguirá recuperar. E vê uma brutinha como a ministra Marta, que não conhece as regras do jogo e não sabe interpretar os sinais dos outros parceiros de mesa, a insistir em apostas altas sem bluff? É um desespero.

De onde vem então a minha alegada simpatia do primeiro parágrafo, só disto? Não. Deu protagonismo a duas mulheres, cada uma medíocre à sua maneira (no caso da Directora-Geral com laivos de comicidade patética, no da ministra com uma imagem atraente de política queque), e isso sempre me pareceu estranho. Percebi agora, através das declarações de um homem de mão que orna a Câmara de Lisboa com a sua irrelevância, que as duas senhoras são na realidade fusíveis, destinados a queimar na eventualidade de alguma coisa correr demasiado mal, como está a suceder em Lisboa.

Bem visto. E como não peço desculpa a ninguém por ter uma grande admiração por Victor Lustig, tiro com respeito o meu chapéu ao prestidigitador Costa – não me tinha lembrado desta jogada. É verdade que o país não ganha nada com isso, e quase certo que desta vez os truques não vão chegar. Mas que o nosso António, como o descreviam com ternura os dois compères na Quadratura do Círculo, é o campeão da manha, lá isso é.

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