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Delito de Opinião

O ataque dos índios

Luís Naves, 30.10.20

Nos melhores westerns costuma haver uma cena em que uma das personagens diz qualquer coisa inócua, seguindo-se a brutal irrupção do ataque dos índios. Em Stagecoach, de John Ford (um dos exemplos) alguém que viaja na diligência diz aos outros passageiros: como não nos voltamos a encontrar, proponho um brinde. Todos concordam, ele está a beber da sua pequena garrafa, de repente ouvimos um som sibilante e o velhinho mais simpático do grupo cai morto e trespassado por uma seta. A ideia do filme é desviar a atenção do perigo para, de súbito, podermos ser surpreendidos. Funciona muito bem na narrativa, mas na vida real é uma coisa patética. Ontem, houve um atentado islamista em Nice: um terrorista entrou numa igreja católica e esfaqueou várias pessoas, matando três. O caso está a causar certa comoção, porque a França esteve sob fortes críticas das autoridades de países muçulmanos (incluindo o presidente turco) a propósito dos supostos excessos retóricos na reacção à morte de um professor de liceu, degolado há uma semana por um islamista, após ter mostrado as caricaturas de Maomé na aula. A indignação dos fanáticos nem se entende bem, pois a resposta francesa foi a do costume, com manifestações e discursos, vigílias e textos indignados, muitas palavras, mas nenhuma acção concreta. Pelo contrário, houve tentativas de relativizar o problema, como se o país não estivesse sob o ataque de fanáticos. Um bispo português, num twitter mais do que lamentável, culpava os europeus por não respeitarem as religiões (ainda bem que isto não foi na igreja dele). Um comentador da rádio pública fazia uma salgalhada entre o ataque do terrorista em Nice e a defesa que os conservadores polacos estão a fazer das suas igrejas, no contexto da contestação ao tribunal constitucional da Polónia, que emitiu uma decisão controversa sobre a lei de aborto, desencadeando manifestações contra os católicos. Para este radialista, em ambos os casos estamos perante o mesmo tipo de obscurantismo religioso. É cada vez mais evidente que nós, europeus, capitulámos na defesa da nossa liberdade. De alguma forma perversa, a culpa é nossa, por não sermos suficientemente tolerantes com estes maluquinhos que nos querem cortar a goela. Deixámos de entender o perigo que enfrentamos e, provavelmente, esta é uma excelente altura para surgir alguém a propor um brinde, já que é improvável que nos voltemos a encontrar.

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