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Delito de Opinião

O asfixiante mundo das boas intenções e a tendência para legislar sobre tudo o que mexe

José António Abreu, 28.12.16

Imaginemos uma fila para aquisição de bilhetes para um espectáculo muito concorrido e com os ingressos prestes a esgotar. Um idoso ou um portador de deficiência passa à frente de quem chegou primeiro?

Obviamente.

(...)

Porque é que o Governo entendeu legislar sobre esta matéria? Haverá uma generalizada falta de bom senso entre os portugueses? Porquê legislar e ter força de lei aquilo que por muitos é visto como bom senso?

A razão é exactamente essa. Esta é uma situação que é vista como bom senso e o bom senso como se costuma dizer é algo como o oxigénio ou o ar que respiramos: só sentimos a falta dele quando de facto não está lá.

Entrevista da Renascença à Secretária de Estado da Inclusão das Pessoas com Deficiência. 

 

Houve um tempo em que a esquerda afirmava acreditar na bondade humana; hoje, prefere desconfiar, controlar e punir. Bom senso seria legislar sobre o essencial e deixar em paz tudo o resto. Mas não apenas organismos públicos diversos e secretarias de Estado para a «Inclusão» têm de justificar a sua duvidosa razão de ser como o Estado vive da imposição e do controlo de regras. Quanto mais existirem, mais Estado pode existir.

Repare-se que a lógica da secretária de Estado é extensível a quase tudo. O bom senso também recomenda que não se ande pelas ruas em fato de banho durante o Inverno, que não se vá engripado a locais onde esteja muita gente, que se ajudem indivíduos à procura da rua x ou da praça y, que se modere o humor diante de desconhecidos, que não se ingiram (e que não se disponibilizem) produtos com elevados teores de açúcar, gordura ou álcool. Mas será necessário legislar sobre estes assuntos?

Os defensores da hemorragia legislativa acreditam que ela torna a sociedade mais justa e solidária. Na verdade, é mais provável que contribua para o aumento do nível de acrimónia. Em primeiro lugar, o excesso de legislação faz com que as pessoas sintam, justa ou injustamente, que os outros estão mais protegidos do que elas: há legislação conferindo privilégios a tantos grupos específicos e até a animais; que legislação se preocupa comigo? Em segundo, leva-as a sentirem-se menorizadas: ao Estado não basta informá-las de que determinado comportamento é preferível a outro; força-as a ele, plasmando-o em lei (a qual, reconheça-se - até um Estado gargantuesco tem limites -, fica muitas vezes por aplicar). Finalmente, converte gestos de boa vontade em imposições - e enquanto ceder voluntariamente o lugar numa fila gera satisfação, ser obrigado a fazê-lo dá azo a reservas e desconfianças. Não pode ser coincidência que, nas sociedades ocidentais, a leis cada mais «perfeitas» pareçam corresponder níveis de individualismo e de falta de cortesia cada vez mais elevados. Num ambiente em que todos os comportamentos se encontram legislados, a única liberdade reside no egoísmo.

É desta forma que, perante o aplauso de muitos e o silêncio indiferente, ignorante ou cobarde de muitos mais, o politicamente correcto se vai transformando em ditadura. Proíbem-se actos, proíbem-se palavras e, quando for possível ler pensamentos, proibir-se-ão todos os considerados impróprios. Sempre em nome de magníficos princípios, numa sociedade cada vez mais crispada.

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