O apogeu do ofendido
Sinal dos tempos: um comediante que ganha a vida a fazer humor perde a cabeça e agride um colega de profissão, em pleno palco, com mais de 15 milhões de pessoas a assistirem à cerimónia, só nos Estados Unidos. Não contente com isso, desata a injuriá-lo aos gritos. Qual o crime cometido pelo colega? Uma piada inócua sobre o visual da mulher do agressor, que se sentiu ofendido.
Tudo isto na chamada «noite dos Óscares», em que a indústria do entertenimento norte-americana se homenageia a si própria numa gala anual que congrega vedetas milionárias do sector - várias das quais construíram as respectivas carreiras com piadas muito menos inócuas do que esta que motivou a agressão. Se cada visado nessas graçolas respondesse da mesma forma, haveria um cenário de violência generalizada e compulsiva: toda a indústria andava à tareia.
Aqui o mais preocupante é o retrocesso que representa na liberdade de expressão. O lote de temas interditos vai aumentando, com o aplauso dos basbaques. Fazer uma simples piada, seja sobre que assunto for, logo provoca ondas de indignação das facções tribais que se sentem atingidas - pelo sexo, pelo género, pela orientação sexual, pela pigmentação da pele, pela etnia, pela religião, pelo sotaque, pela filiação clubística ou pelas características físicas ou psicológicas.
«A liberdade de odiar jamais esteve tão descontrolada nas redes sociais, mas a liberdade de falar e de pensar nunca esteve tão vigiada na vida real», sublinha a escritora francesa Caroline Fourest, colaboradora do Charlie Hebdo, num estimulante ensaio intitulado Geração Ofendida - Da polícia cultural à polícia do pensamento (tradução minha, pois a obra ainda não existe em português).
Agora qualquer ofendido é levado em ombros, justificando o silenciamento dos supostos ofensores. «Nos Estados Unidos, basta a palavra "ofender" para que uma conversa seja apagada», observa Caroline Fourest, sublinhando: «As sociedades contemporâneas puseram o estatuto de vítima no posto mais elevado do pódio.»
Que o amor à liberdade está em retrocesso acelerado é algo que se comprova nas redes sociais pelas reacções de generalizado aplauso ao agressor, Will Smith, nas últimas 24 horas. Aplausos até daqueles que desatariam aos gritos, denunciando o suposto carácter «racista» do incidente, se o humorista negro Chris Rock tivesse sido esbofeteado por um colega de pele mais clara em idênticas circunstâncias.
Pouco antes, numa das mais apolíticas cerimónias de distribuição de estatuetas da última década, a vasta plateia tinha mantido meio minuto de silêncio em homenagem às vítimas da brutal agressão russa à Ucrânia.
Triste simbolismo o daquela noite no Teatro Dolby, em Los Angeles: minutos depois, fazia-se ali a demonstração prática de que a violência física é o método mais recomendável para a resolução de conflitos. E triste recado ao mundo vindo da chamada América «liberal» - tão rendida afinal aos expedientes das autocracias, tão transparente nesta crescente aversão à liberdade.