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Delito de Opinião

O Almirante

jpt, 19.03.23

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(Gouveia e Melo, fotografado por Miguel Valle de Figueiredo)

O país estava exausto pelos efeitos do Covid-19, atrapalhado pelos normais constrangimentos e hesitações governamentais face àquele enorme desafio, tudo incrementado por alguns ziguezagues desnecessários. Após um ano de pressão pandémica o alívio da esperada vacinação começou embrulhado em confusão executiva e manchado por alguns casos de nepotismo, na apropriação de vacinas por membros da elite socialista, algo exasperante e incrementando dúvidas sobre a capacidade de uma competente vacinação universal. Neste caso não é necessário fazer o rescaldo das práticas então seguidas pelo Ministério da Saúde, e restante governo, pois nisso logo se dividem as opiniões devido a critérios advindos do viés partidário. Mas é pacífico constatar que após Gouveia e Melo ter sido colocado no topo da sua estrutura organizacional  - e de ter lhe reforçado a participação militar  - o processo nacional de vacinação foi um sucesso, até inesperado. Para tal contribuiu a credibilização dos serviços: explicitando a confiança nacional nos ditâmes dos agentes da Saúde (remetendo os "negacionistas" das vacinas a um minoria histriónica). Mas também na racionalidade e na rectidão dos processos, pois logo minguaram as atrapalhações executivas e, mais, desapareceram as notícias sobre autarcas e deputados a reservarem alguns lotes de vacinas para si, familiares, amigos e vizinhos. E contribuiu também, não o esquecer, a constante e ponderada disponibilidade comunicacional do coordenador-geral Gouveia e Melo, sossegando e mobilizando as hostes nacionais.

 

O homem tornou-se assim popular, até por alguma distinção face ao errático, e até vácuo, discurso de vários políticos e altos quadros da administração pública (e lembro "o caso das compotas", exasperante minudência desqualificadora - e em momento tão pressionante - das hierarquias do funcionalismo). Ao fim de alguns meses, consabido o sucesso da vacinação (até em termos internacionais), começaram os dichotes críticos, advindos dos produtores de opinião (ditos "comentadores") ligados ao partido do governo, na senda de protegerem a imagem da dita "Super-Marta" - então até dita futura "secretária-geral" e agora próxima "presidente da câmara" - e os méritos dos restantes dignitários socialistas.

Disse-se então, tal como agora se diz, que o homem tem ambições presidenciais. Forma óbvia de apoucar a sua contribuição naquele momento, como se reduzindo-a a um modo, até moralmente ilegítimo, de servir uma esconsa agenda pessoal. Tal ideia - fundamentada ou não - logo se disseminou. E decerto que muita gente a acolheu com agrado. Por escassez de vultos confiáveis no espectro político português. Pela influência de um imaginário que consagra uma mítica imagem de rectidão intrínseca ao oficialato (esquecendo que, tal como entre os civis, "há de tudo" entre os militares). Pela persistência de uma visão muito conservadora (reaccionária, mesmo), saudosa de uma "ordem e disciplina" na sociedade, passível de ser dinamizada pela tradicional disciplina hierarquizada militar - o que é um erro, a sociedade não é um quartel nem um navio... E acima de tudo por uma incompreensão sobre o sistema político português: pois o que consagrou o então vice-almirante foi a sua capacidade de planificação e execução de uma política nacional, e em difícil situação de emergência. Ora isso são as características que se deverão ambicionar para as funções de... primeiro-ministro, na liderança de um executivo. Ou seja, clamar por um qualquer "gouveia e melo" para a presidência da república é não perceber o nosso sistema semipresidencial. 

Dito isto lembro o óbvio. As Forças Armadas têm sido negligenciadas - nos orçamentos e na sua valorização social. Temos, felizmente, um oficialato civilista, que apesar dos tratos de polé que a instituição vem tendo se mantém isento de práticas pressionantes sobre o poder político. E este responde como tem respondido: lembro que o antepenúltimo ministro da Defesa abandonou o cargo sob processo judicial e em pleno tribunal se defendeu com o argumento que era intelectualmente incapaz de perceber a documentação que recebia, assim sendo absolvido. Chegámos a este ponto de destratamento das Forças Armadas por parte do regime...

De repente estala a guerra na Ucrânia e a NATO aplica-se a apoiar o país invadido. A Portugal calha alguma, muito minoritária, contribuição em material para essa ajuda. Ou seja, chama-se a atenção para o estado do "paiol" - compraram-se 37 tanques ditos "Rolls-Royce" e só 2 ou 3 (!) é que estão operacionais, e desprovidos de munições reais...! É necessário um navio para ladear um passante russo e este não está nas condições apropriadas tal como o seu substituto, que logo se avaria. Face a estas "barracadas", e em surdina, vão-se ouvindo alertas de que isto corresponde ao estado-geral da "tropa", fruto das continuadas punções orçamentais e de políticas de Defesa Nacional desenquadradas.

E o que acontece? Os tanques não andam, os navios não navegam, o resto suspeita-se encravado. Apela-se à "responsabilidade política" (a la Jorge Coelho) de quem tem conduzido a infraestrutura militar a este ponto? Nada disso. Ou seja, exige-se civilismo à hierarquia militar, e esta cumpre. E ainda bem. E o poder político, o tal "civilismo"? Manda actuar os "comentadores"...

Este "caso Gouveia e Melo" é bem notório disso. O navio "Mondego" estaria há muito tempo com falta das condições necessárias. Os marinheiros sabiam-no. Receberam instruções para acompanhar um navio russo, missão peculiar dada a guerra. E aproveitam o facto excêntrico, e passível de algum impacto internacional, para uma manifestação pública - uma "arruada" dir-se-ia em linguagem civil. De facto, é um acto político que procura as maiores repercussões possíveis - uma espécie de acção sindicalista partidarizada. Mas é também um apelo, até uma convocatória, aos militares dos três ramos que se movimentem, que pressionem o poder político e as hierarquias militares. Em resposta, o Chefe de Estado-Maior exige o respeito pela hierarquia civilista - e fá-lo publicamente, forma de comunicar não só com todos os elementos das forças armadas mas também com a sociedade (civilista), algo estupefacta com esta movimentação. Ou seja, Gouveia e Melo, fala com os "seus" homens e com a sociedade - sabendo que o fez antes, noutra situação, com efeitos bem positivos.

O que respondem os apoiantes deste poder - os socialistas, os avençados ou funcionários "comentadores", os arautos geringôncicos? E alguma extrema-direita, temerosa de que uma figura de teor patriarcal esvazie o vácuo balão Ventura? Criticam-no a ele por falar em público, dizem-no "ambicioso sem princípios" (José Pacheco Pereira). Insisto, "responsabilidade política" por quem deixou chegar a manutenção da tropa a este ponto? Nada...

Dito isto, se por acaso Gouveia e Melo aspira mesmo a ser presidente da República e se se candidatar eu não votarei nele, menos por ele próprio do que por temer essa ideia difusa de que um militar "põe ordem na casa"... Excepto, entenda-se, se enfrentar o actual presidente da Assembleia da República, Santos Silva - consabido relevante colaboracionista socratista -, que utiliza o desempenho destas suas funções para acalentar uma futura candidatura, coisa que José Pacheco Pereira, o ideólogo da "geringonça considera errada... se for o caso de Gouveia e Melo.

Mas espero bem que não seja preciso, que outrem avance. Contra este socratismo sem Sócrates.

 

 

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