O Airbus A380
Quando o poeta Costa Silva fez o seu inspirado Plano sobre a forma como o país deveria torrar 45 mil milhões em fantasias tentei, e desisti, ler a coisa até ao fim. Comentei a parte que li, e presumi que o resto era igualmente disparate.
Desde então, diversas sumidades se têm pronunciado sobre o ponderoso estudo, com o louvável propósito de o demolir. Mas, ó desgraça, sucedeu o que tinha antecipado: “Por outro lado, no catálogo de intenções e medidas o principal vício não é serem umas e não outras – para esse peditório não faltam iluminados com visões, que decerto aparecerão quando estas ingentes matérias aparecerem sob a forma de iniciativas legislativas e decisões políticas, sobre as quais se vai debruçar o olho opinativo dos reformadores nacionais, que são legião”.
Ainda o arame cá não chegou e já gente de representação tem planos alternativos, isto é, não rejeita nem os apoios públicos selectivos de agentes económicos, nem a ideia de financiar investimentos privados com dinheiro dado, nem a previsão de evoluções e circunstâncias – apenas acha que espatifar incontáveis milhões no cenário a) é uma grande burrice, que todavia se transmuta em brilhante clarividência no cenário b).
A generalidade dos comentadores pega em dois ou três pontos, não no Plano completo, visto que este diz respeito a tudo e o seu contrário (com excepção de assuntos relativos a sexo, que estão dolorosamente omissos). Esta prudência justifica-se: fazer um Plano alternativo obrigaria a uma sólida formação em economia vudu e enciclopedismo.
Este André Vilares Morgado, engenheiro do progresso, “convoca”, dos dez eixos estratégicos apresentados no documento, “o quinto, em que o seu autor advoga que a reindustrialização do país deve assentar em empresas digitalmente integradas, isto é, ‘que casam o mundo físico e digital”. (A frase é de belo efeito e deve por certo querer dizer qualquer coisa).
Começa por concordar com a ideia da reindustrialização, esquissando as razões pelas quais a desindustrialização teve lugar, sem gastar sequer um parágrafo a explicar convincentemente por que razão esta última, continuando presentes as suas causas, verá o seu processo revertido por um conjunto de decisões administrativas. Devemos acreditar que o conjunto destas é necessário e suficiente. Mas não é, nem uma coisa nem outra, como se verá.
Que decisões administrativas portentosas são essas? São: i) A criação do Banco de Fomento; ii) A formação de empresários e dirigentes; iii) A criação de mecanismos que contribuam para contrariarem a tendência para a recusa da “partilha de ideias e na inovação”. “Em Portugal temos dificuldade em trabalhar uns com os outros, associarmo-nos, juntar forças e criar sinergias. Preferimos competir do que cooperar”, diz o preclaro e eu confirmo pela minha experiência, é tudo uma cambada de egoístas; iv) A criação de valor. Os empresários produzem sucata com pouco valor acrescentado, e isso não pode ser. Do que eles precisam é “de produtos que integrem mais complexidade e sofisticação… devendo, para esse efeito, apostar no design e recorrer a novos materiais e tecnologia”. Precisam disto mas sem esquecer que “não vão poder deixar de olhar para outras tecnologias que hoje ainda são vistas como emergentes — como, por exemplo, a nanotecnologia, realidade aumentada, machine learning e blockchain —, mas que, em breve, terão uma palavra a dizer sobre o desenho dos processos produtivos e a geração de novos modelos de negócio”. (O autor não informa, neste ponto, se os empresários não necessitarão igualmente de um aumento do consumo de benzodiazepinas, por causa da ansiedade, e de fósforo, para reforço da elasticidade das meninges); v) A captura de valor. Digamo-lo rudemente: os empresários são uns totós. Mas, felizmente, para combater essa alegada totozice basta a “implementação de processos de marketing robustos”.
Toma, Costa Silva, que já almoçaste, pelo menos num eixo. E os outros nove vão igualmente levar grandes sovas, que do que não há falta é de académicos que sabem perfeitamente como se torram dezenas de milhares de milhões de euros para fazer o país novo que os seus colegas anteriormente estuporaram, quando se dê o caso de, por serem novinhos, não terem sido eles mesmos a colaborar em tão patriótica tarefa.
Sucede que, por partes:
Já existe um banco público que financia investimentos, a Caixa Geral de Depósitos, e convinha portanto explicar em que é que um novo será diferente da Caixa, salvo pelo facto de ter uma outra administração, outros funcionários e outras instalações. A Caixa tem um passado de fomento de investimentos e de calotes, mas nada, absolutamente nada, na sua administração actual, apresenta contra-indicações específicas para um respeitável esbanjamento de fundos públicos. Nem a Caixa nem, já agora, os bancos privados, com excepção talvez do Novo Banco, a respeito do qual ainda ninguém percebeu se faz negócios ruinosos para engordar plutocratas e vigaristas ou se os negócios são normais, os valores do balanço original é que não. Donde, a criação de um banco de Fomento só parece uma boa ideia para quem dele directa ou indirectamente espere beneficiar.
Todos os anos, e de há muito, as faculdades de Economia e Gestão despejam no mercado de trabalho dezenas de economistas e gestores qualificadíssimos que se veem aflitos para encontrar emprego na função pública, em bancos, seguradoras e grandes empresas. Nas pequenas e médias nem por isso porque, lá está, os empresários que há, uma classe notavelmente vesga, não os querem por aí além. De modo que a alegada necessidade de formação dos empresários é uma resposta estúpida a uma pergunta errada. A pergunta certa é por que razão são tão poucas as pessoas com boa formação que fazem empresas. Dito de outro modo, pretende-se que quem não consegue criar emprego para si mesmo vá dar aulas a quem não quer empregar os que lhe querem dar aulas. Isto em doutorais cabeças faz todo o sentido. Na minha nem por isso. Talvez não fosse má ideia perguntar a uns quantos milhares de licenciados que já trabalhem há alguns anos: Tentou fazer uma empresa? Se não, porquê? Se sim, porque não conseguiu? Não é impossível que com as respostas, em particular à segunda pergunta, se aprendesse alguma coisa.
A “partilha de ideias e inovação”, e a preferência pela competição em vez da cooperação, que outros têm e nós não, é uma ideia comovente. Um espírito cínico como o meu, porém, atreve-se a duvidar de que seja realmente assim e presume prospectivamente que as pessoas cooperam se houver vantagens recíprocas evidentes, aqui e em toda a parte. E como essas vantagens têm provavelmente componentes fiscais que não estão presentes, e obstáculos que estão, a resposta deve encontrar-se não numa diferença cultural (que aliás, se existisse, não seria ultrapassável por diktats de gurus) mas em circunstâncias objectivas – que o autor não identifica.
O design, a tecnologia, a complexidade, a sofisticação e mais um par de botas surgem numa economia vibrante onde o capital exista em abundância, a respectiva remuneração também (em vez de um Fisco inimputável, predatório e sôfrego), o capital de risco idem para projectos avançados, o Estado e a sua miríade de agências funcione, incluindo os tribunais, haja abundância de empreendedores ambiciosos, de falhados que voltam a tentar, de sonhadores, de trabalhadores qualificados disponíveis, e um longo etc. Em suma, onde a economia cresça com naturalidade porque há condições para crescer, não porque uma mão-cheia de políticos, funcionários e académicos iluminados sem skin in the game decide quem investe o quê, quando e aonde.
Melhor fora que estas boas cabeças estudassem que condições objectivas criar para ajudar as empresas a nascer e crescer sem decisões casuísticas de poderes públicos; para que o Estado, em vez de estar por trás, saia da frente; como reformá-lo para o tornar mais leve, em todos os sentidos, não porque seja demasiado pesado em comparação com muitas economias mais avançadas mas porque essas economias não são avançadas por terem Estados pesados, mas sim porque podem – corpos musculados aguentam sem esforço mochilas mais pesadas. E, finalmente, explicassem porque se acredita que, suportando o mesmo peso, mas com corpos mais débeis e estradas piores, vamos correr mais do que os outros.
Enfim, mais uns retoques no Plano Costa Silva. Outros virão, com outras visões, outros sectores que é preciso promover, outras medidas que é indispensável tomar, outros aspectos que é preciso ter em conta, cada um segundo as suas crenças e as suas manias. De liberdade económica nicles, de reforma do Estado e fiscal zero, de liberdade de contratar e despedir nem mo-lo digas, nem, nem, nem.
Chamei ao post anterior sobre este assunto O Aero-Plano. Nome infeliz, creio bem que com todas as versões de planeamento vamos precisar de um Airbus A380. Senão de um paquete.