Saltar para: Post [1], Comentários [2], Pesquisa e Arquivos [3]

Delito de Opinião

O Aero-Plano

José Meireles Graça, 23.07.20

Tinha decidido que iria ler pacientemente o Plano Costa Silva e comentá-lo, atento às necessidades de incontáveis milhares de cidadãos ansiosos que precisam conhecer a minha opinião para formar a deles. Porém, comecei e desisti a meio, aterrado: é um documento inacreditavelmente extenso, indigesto, repleto de certezas sobre geopolítica e economia contemporâneas que relevam ou de ignorância ou inconsciência, a par de uma impressionante falta de humildade, e prenhe de raciocínios voluntaristas repassados de uma grande dose de fé, que é apresentada quase como ciência. Comentar capítulo a capítulo daria um intragável post, mesmo que descartasse a palha, que é muita, e deixasse de lado aspectos menores. Poderia omitir também observações quando, no desparrame de investimentos públicos, concordasse, como é por exemplo o caso da ligação ao resto da Europa por caminho de ferro, para transporte de mercadorias. Mas mesmo assim: não poderia despachar loucuras como os investimentos faraónicos no hidrogénio ou no novo aeroporto de Lisboa. Em suma, Costa Silva é um chato topa-a-tudo, nem sequer merece que se cansem excessivamente as meninges a demolir o seu pedante exercício.

Por outro lado, no catálogo de intenções e medidas o principal vício não é serem umas e não outras – para esse peditório não faltam iluminados com visões, que decerto aparecerão quando estas ingentes matérias aparecerem sob a forma de iniciativas legislativas e decisões políticas, sobre as quais se vai debruçar o olho opinativo dos reformadores nacionais, que são legião.

O que segue é portanto uma apreciação genérica.

Maria de Lurdes Pintasilgo, justamente esquecida, foi primeira-ministra durante seis meses, em 1979, a convite de Ramalho Eanes, impressionado com a sua competência técnica (era engenheira química, como frau Merkel), a sua carreira profissional no sector privado (trabalhou na CUF), o seu percurso público (procuradora à Câmara Corporativa, secretária de Estado, ocupou vários cargos nacionais e internacionais em organizações do catolicismo militante, hoje decadente, e da promoção do mulherio, hoje florescente) e o seu palavreado: falava diluvianamente sobre o país, ao qual sabia perfeitamente o que convinha, e a palavra-chave do seu discurso era invariavelmente o plano. Para tudo faltavam planos, para tudo era necessário fazer planos, e não havia problema que um plano bem feito não resolvesse. Paz à sua alma, morreu em 2004.

O futuro viria a confirmar a sua visão: desde a adesão à CEE em 1985 planos é o que não tem faltado, e distinguem-se uns dos outros porque os mais recentes destinam-se a corrigir os vícios e os efeitos perversos dos anteriores, além da actualização do pensamento económico em obediência às últimas modas e aos mais recentes falhanços, tendo em comum o destinarem-se a distribuir o bodo europeu e a aproximarem Portugal dos países mais desenvolvidos da UE.

Os planos sempre andaram de par com os estudos e os relatórios. E destes o mais famoso foi o de Porter (encomendado a peso de ouro pelo ministro da Indústria de Cavaco, Mira Amaral), hoje esquecido porque se veio a concluir que o guru era na realidade um treteiro albardado de prestigiados diplomas. Nada que tivesse impedido uma geração de economistas, gestores e marqueteiros de serem obrigados a empinar-lhe as teorias.

Bem bem, Portugal tem a maior dívida pública da sua história, e a privada está igualmente na tropopausa; não tem praticamente bancos privados, que são quase todos estrangeiros, nem grandes empresas, salvo no sector da distribuição de secos e molhados e alguns serviços; não tem capitalistas e os ricos são aqueles que tenham um rendimento bruto mensal acima de seis mil e tal euros, a partir do que o Estado pressurosamente pilha quase 50%, só a título de IRS; não cresce nada que se veja há 20 anos e o seu rendimento por cabeça desliza para o último lugar da tabela, numa União que não cessa de perder importância no mundo; não fosse a ligação permanente à máquina do BCE e os juros da dívida monstruosa sufocariam o país; e a Autoridade Tributária tornou-se na Santa Inquisição, completa com inversões do ónus da prova, acusações ininteligíveis e familiares inimputáveis, depositários da sagrada missão de perseguir os evasores.

De modo que podemos achar que sem planos ainda era pior, que com os planos temos sido vítimas de um grande azar, ou que os 130.000 milhões que a CEE e a UE já para cá expediram, a fundo perdido, foram uma gota de água: não temos um SNS público exemplar, inveja de nações pouco esclarecidas? E não fornecemos dentistas e enfermeiros ao Reino Unido, e arquitectos ao Dubai, fruto da aposta na educação? Pois então a Europa da solidariedade, em vez de revoltantes contas de merceeiro, deveria era alargar os cordões à bolsa para sustentar este aluno dilecto.

Vem agora aí uma abada de milhões, uma parte a fundo perdido, e outra a título de empréstimos, à boleia da crise que a Covid provocou (na realidade não foi a Covid mas a forma como os Estados danificaram as economias para lidar com ela, mas não vamos estar com peguilhices). Soube-se disto um dia antes de Costa Silva, o miraculado escolhido pelo PM para o ajudar a fazer sombra a D. João II, apresentar o Plano, e paira no país uma onda de optimismo e satisfação, que pudicamente a comunicação social não tem querido estragar com a informação de que os 750 mil milhões (para nós 45, se faz favor) serão a prazo cobertos com novos impostos.

Pois bem. Na altura em que parei de ler porque ninguém me paga nem tenho pecados sérios a expiar, estava impressionado com

O Paleio

Costa Silva não sabe bem se há de escrever em economês ou em engenheirês, dois dialectos destinados a obscurecer o que é simples e a levar as pessoas a pensar que os autores são depositários de competências profundas. “Este Plano parte de dois quadros conceptuais que se interligam, e da sua análise estratégica resultam os pilares estruturantes do programa de recuperação”, diz logo na Introdução, e o leitor intrépido que se aventure no resto do texto para tentar perceber o que raio quer isto dizer vai tropeçar em visões, pilares, paradigmas, clusters, apostas, dinâmicas e

Vagueza de conceitos

A primeira vez que ouvi falar em economia circular julguei que se estavam a referir a carrosséis, mas desconfiei. Com razão: parece que por economia circular se entende o que Salazar condensou no bordão “guarda o que não te faz falta, encontrarás o que te é preciso”, o povo no provérbio “no poupar é que está o ganho”, e a ciência na proposição, adaptada, nada se perde, tudo se cria, tudo se transforma. Na prática, é uma cedência à histeria ambientalista das Gretas deste mundo, e mesmo que haja futuro, como há, na satisfação da procura de tretas verdes, é esse um filão a explorar por genuínos empreendedores, que o mercado recompensará ou não. O Estado metido no processo garante corrupção e torra de recursos em projectos inviáveis. Costa não sabe isto? Não, não sabe, e por via das dúvidas fala de economia circular mas não a define, como aliás não define quase nada: estas coisas são para cognoscenti, tanto pior se quem paga no final, que é o contribuinte, entender tanto deste plano como entendeu dos anteriores. A economia digital, outro conceito, releva da mesma abordagem ingénua: partindo da constatação de que as ciências de computação têm cada vez mais importância – e têm – há que aprofundar a tendência e ajudar quem esteja ou queira estar no ramo, e financiar todo o cão e gato que conte um filme empreendedorístico que se abrigue sob a epígrafe “digital”, sem curar de saber se o tal futuro incógnito vai recompensar a aposta. Se vai, os fundos de pouco serviram; se não, foram espatifados; e se sim ou não o especialista, que é Nosso Senhor, não é consultor do engenheiro Silva, a menos que este, à condição de ingénuo, acrescente a de chanfrado. Quer dizer que, entre outras coisas, a este Plano falta

Realismo

Querer prever o futuro é um velho sonho da humanidade, e actual dos profissionais do progresso programado, que vicejam nas faculdades de Economia por definição, nas de outros departamentos porque é o que está a dar, e nas redacções porque adivinhar o futuro, e mais ainda moldá-lo, vende. E quanto mais surpreendente e agradável ou ameaçador ele seja apresentado, e mais prestigiada a universidade, e mais convincente o raciocínio, melhor. Pessoas ingénuas julgam que a profissão de arúspice se extinguiu. Que nada, mudou foi de nome e de métodos: enquanto dantes se examinavam as entranhas de animais imolados, ou o voo de aves, agora pintam-se cenários e apresentam-se gráficos que, com o rigor da matemática e a flexibilidade do Excel, dissipam todas as dúvidas.

Sucede que as economias foram e ainda estão, em parte, paralisadas pelos Estados e o medo dos cidadãos. Isto criou quebras e danos, enfraqueceu os mais fortes, matou alguns dos mais fracos, e pode ainda liquidar muitos mais, pelo que se gerou um consenso: é preciso ajudar com moratórias quem possa ser ajudado, suspender obrigações que não é possível cumprir, e amparar o sistema financeiro, que irriga os outros. Isto foi feito de forma canhestra e com grande diferença entre a realidade e a imagem que dela dá a comunicação social enfeudada ao socialismo doméstico, que é quase toda; mas foi feito. Infelizmente, como a UE viu aqui (mal, disso não curo agora) uma oportunidade para se afirmar, adoptou um Plano Marshall, não tanto para restaurar a destruição física que quase não houve mas para reorientar a economia para o regresso a um crescimento sustentado, com respeito pelo ambiente, a igualdade, as tecnologias do futuro e mais um par de botas. Ou seja, em vez de cada Estado se ir endividar ao mercado para fazer o que melhor entendesse, foi a UE, com implicações para a fiscalidade futura, reforço dos poderes das burocracias, acentuação do dirigismo estatal bruxelense  e do directório informal dos grandes países, que os pequenos frugais, quer-se acreditar, vão engolir indefinidamente. Os europeístas, que são quase todos os portugueses, rejubilam: vamos ter a fiscalidade da Estónia, a eficiência alemã, a criatividade italiana e o rendimento dos luxemburgueses, enquanto todos estes infelizes europeus vão finalmente adoptar a culinária portuguesa. Sim, e eu vou para novo, e não rejeito a probabilidade de vir a ter uma amante finlandesa – loura, escultural, de olhos azuis, poliglota, CEO de uma multinacional e com uma incontrolável paixão pelo je.

O futuro não pode ser previsto, e o facto de haver sempre quem, nisto ou naquilo, o adivinhe, não invalida a afirmação: há tanto palpite diferente sobre o como vai ser que alguém acerta; mas isto não faz com que a construção de cenários onde se projectam as tendências do presente seja o pano de fundo adequado para enterrar milhões, muito menos quando são decisores públicos que fazem as escolhas, seleccionando os vencedores antecipados, decidindo o que tem e o que não tem pernas para andar, substituindo-se ao mercado e a milhões de decisões e iniciativas individuais, e fazendo tábua rasa da nossa tradição de corrupção, tráfico de influências, prodigiosa estupidez e ineficácia de agências governamentais, ausência calamitosa de liberalismo económico na Academia, e portanto na magistratura de opinião económica, o que tudo compõe um quadro que recomendaria prudência – precisamente o oposto do que Silva propugna, que é o aventureirismo.

De modo que a petulância que estas extraordinárias personagens exibem, ao entender que eles vão acertar onde todos os seus antecessores falharam, releva desde logo de um soberano desprezo pela experiência: acaso todos os políticos, todos os teóricos e práticos da gestão pública, todos os economistas que já elaboraram planos e os aplicaram, eram uma récua de imbecis, ignorantes ou desonestos? Porque lá falhar, falharam: nenhum plano foi jamais avaliado pelo confronto entre os seus resultados e os seus propósitos, nenhuma decisão verdadeiramente escrutinada, e nenhuma mea-culpa assumida. E todavia o país faliu três vezes em quarenta anos, precisa do apoio relutante dos frugais para mais esta crise, e acredita, como já acreditou doutras, que desta é que vai ser. Não, não há falta, ao contrário do que se acredita nas redes sociais, de gente séria e com sérias credenciais académicas. E, tirando da equação o fenómeno da corrupção, que não tem as costas tão largas que nelas se possa dependurar toda a explicação dos falhanços, alguma coisa em comum tem todo este intervencionismo estatal que teimosamente produz mediocridade.

A meu ver – mas eu não sou obrigado a ver nada porque não sou autor de plano nenhum – do que precisamos não é que o Estado faça o país que Estado nenhum jamais fez modernamente em sítio algum. Porque quem faz não é o Estado, ele apenas cria condições para que se possa fazer. E essas condições implicam liberdade económica, fiscalidade comedida, desamor à igualdade material entre os cidadãos (não há corrente eléctrica sem voltagem, isto é, diferença de tensão, e do mesmo modo não há crescimento significativo sem lisonjear e gratificar a ambição e a vaidade de quem quer arriscar), e limitação de despesas públicas, isto é, eliminação de serviços redundantes, análise permanente de custo/benefício dos necessários, abandono da confusão entre prestação de cuidados públicos, de saúde ou educação por exemplo, e propriedade pública. Tudo isto e um longo etc., que não precisa de conter nenhuma novidade.

Dito de outro modo: do que precisamos, e não temos, é de quem saiba interpretar correctamente o passado, não de quem julgue que sabe ler o futuro; não de quem queira mostrar o caminho, mas sair da frente; e não de quem queira copiar os estados sociais, e as soluções, de quem vive melhor do que nós mas há muito  deixou de crescer percentualmente muito mais, indo buscar inspiração, e aprendendo, com aqueles países que já foram relativamente atrasados e no passado e no presente ganharam lugares na ladeira do desenvolvimento.

17 comentários

Comentar post

Pág. 1/2