O absurdo no trato
Tenho um amigo madrileno que foi professor de espanhol (castelhano, para os puristas) em Lisboa. Após anos a leccionar em países como França, Inglaterra, Hungria e Polónia, a profissão trouxe-o à nossa capital. Dos vários países onde andou, Portugal era o preferido da sua mãe. Pela proximidade a Espanha e consequente facilidade de estar com a família, pensei. Mas não. A razão era outra. De todos os países por onde o filho passou, incluindo o país onde nasceu, este era o único onde ele, licenciado em História, era tratado por doutor. Do cartão de débito à conta da luz, o ‘dr.’ português cobria o seu querido filho de merecida glória.
Mais do que um sinal de provincianismo serôdio, que o é, o apego irrefreável a títulos académicos é talvez a face mais visível de um preconceito de classe que teima em não desaparecer. Podia aqui introduzir copiosos apontamentos profissionais. Por exemplo, reuniões onde quem presidia apresentou o Dr. X, o Eng. Y, o Arq. Z e o senhor (muita ênfase em “senhor”) Manuel Silva. Isto é, ainda antes do início das hostilidades, fica claro que há macacos de primeira e de segunda e, caso houvesse dúvidas ou resistências, a apresentação encarregou-se de distribuir uns e outros pelos respectivos galhos. À medida que a reunião avança, os Dr., Eng. e Arq. exibem uma resistência digna de vigas estruturais, enquanto o Sr. e o respectivo apelido são atirados às malvas, sobrando apenas um Manel abandonado. Já na universidade, porque o uso de títulos académicos aí se justifica, a altivez é por vezes levada a níveis de pedantismo raras vezes vistos noutras paragens. Na política, segundo a opinião publicada, abdicar conscientemente da potestade doutoral indicia um tipo de parolice que só pode vir de um estrangeirado.
Há quem encontre a origem desta prática em mais uma herança do Estado Novo. Percebo, mas julgo tratar-se um problema de sexo. Embora o fenómeno não tenha um exclusivo de género, a obsessão pátria com os títulos académicos é essencialmente masculina – poucas são as mulheres que conheço que se preocupam com isto. Assim sendo, só vejo uma explicação possível: um complexo de Édipo mal resolvido. Ao licenciarem-se, os homens portugueses ouvem com entusiasmo o orgulho das respectivas mães, avós e tias, normalmente expresso na frase “Ai que o meu rico menino já é dr!”. Daí em diante, e não obstante a passagem do tempo transformar os ricos meninos em pedantes velhinhos, o ego dos homens licenciados permanece ancorado à necessidade de agradar às respectivas mãezinhas. A ostentação do título académico resultará, portanto, de uma legião de intelectos masculinos parqueados na etapa fálica do desenvolvimento psicossexual.
Paulo Rangel propôs no último Congresso do PSD pôr fim ao uso de títulos académicos. Como é óbvio e bem assinala o Luís Menezes Leitão no i, fazer disto a única proposta fracturante que se apresenta a um congresso onde, por vontade própria, se esperava crítica é, no mínimo, não ter noção do ridículo. Mas continuarmos a alimentar uma forma de trato que resulta da fragilidade freudiana de egos sequestrados pelas nossas mãezinhas não é menos absurdo.