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Delito de Opinião

Novas fogueiras na escuridão

Pedro Correia, 03.08.19

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Fotograma (censurado) de Noites Escaldantes: toda a nudez é hoje castigada

 

No momento em que escrevo estas linhas, Woody Allen filma em San Sebastián, no País Basco espanhol, após um ano de inactividade total: 2018 foi uma folha em branco no seu extenso percurso artístico.

Regressa timidamente ao exercício da profissão que o apaixona, muito longe do seu país natal. Mesmo assim, entre críticas duríssimas, vindas da chamada vox populi, à «indecência» do seu comportamento, não faltando quem lhe chame «pervertido» ao vê-lo passar e quem grite contra a «publicidade negativa» que isto trará à cidade, afugentando turistas.

Um quarto de século depois, continua acusado não na justiça verdadeira, mas nos pelourinhos de rua. Motivo: um alegado crime de natureza sexual que jurou sempre não ter cometido e baseado em supostos factos jamais comprovados não apenas na investigação judicial mas também na exaustiva e minuciosa investigação jornalística que a acompanhou.

À falta de verdade, bastou o boato: um dos mais prestigiados cineastas de todos os tempos foi condenado ainda em vida à morte civil, apedrejado nos mais diversos recantos do planeta, impedido de exercer direitos básicos - começando pelo direito ao trabalho. Mesmo assim, com admirável tenacidade, o criador de Annie Hall, Manhattan e Hannah e as Suas Irmãs tenta agora regressar à tona de água, aos 83 anos, combatendo um novo maccartismo - desta vez já não de explícita natureza política, mas sexual.

 

Allen deixou de poder estrear um filme todos os anos: o último que rodou, A Rainy Day in New York, foi adquirido e confiscado pela Amazon, que o manteve em armazém, tornando-o invisível: é um crime de lesa-arte, mas muitos sectores aplaudem o crime, como se fosse um acto heróico. Concluído em 2017, nunca entrou no circuito comercial. O realizador teve de lutar em tribunal para adquirir em nome próprio o direito de exibição em território norte-americano, mas até ao momento não conseguiu encontrar sala de projecção: todos os exibidores receiam sofrer irreversíveis danos reputacionais. Por darem a mão a alguém que, como Woody Allen, ensinou milhões de pessoas a ver, a ouvir (muitos espectadores escutaram pela primeira vez Louis Armstrong e Ella Fitzgerald nos seus filmes) e a pensar.

Actores que interpretaram A Rainy Day in New York - incluindo o protagonista, Timothée Chalamet - apressaram-se a anunciar, alto e bom som, que entregariam o salário a organizações feministas. Como se Allen tivesse peste, um coro orquestrado de actrizes e actores ergueu-se em orgástica condenação daquela alma demoníaca que havia desencaminhado uma enteada no remanso do lar - tomando o rumor como facto, negando o contraditório ao cineasta e apontando-lhe a espada justiceira. De pouco ou nada valeu lembrar que ao longo de meio século de actividade nunca o realizador foi alvo de qualquer queixa por conduta imprópria da parte de qualquer actriz, principal ou secundária.

Não tardou um olhar "revisionista" da obra integral do cineasta, passada a pente fino pelos novos censores morais que nela descobriram inúmeros indícios de pedofilia, agravados pelo impenitente machismo que lhe marca o conteúdo e a forma, antes tão incensadas pela "vanguarda" intelectual novaiorquina.

 

Woody_Allen_at_San_Sebastian_Filmfestival_2008[1].Woody Allen em San Sebastián: insultos e solidão 50 filmes depois

 

Um cineasta que não consegue estrear os filmes. E também um escritor que não consegue editar os livros: até ao momento, nenhuma chancela editorial mostrou interesse em publicar-lhe a autobiografia entretanto concluída: a estridente pressão dos movimentos neopuritanos grita mais alto, condicionando não apenas o acto criador mas toda a expressão pública de simpatia por quem ouse remar contra os novos dogmas.

Imagino um Vladimir Nabokov - que lançou a sua imortal Lolita em 1955, na Europa, após cinco temerosas editoras norte-americanas lhe terem devolvido o manuscrito e só viu o livro impresso nos EUA três anos mais tarde - nos nossos dias: seria alvo de um implacável linchamento moral, sem apelo nem agravo, condenado a expiação eterna.

Imagino um Nelson Rodrigues na actualidade: banido da escrita jornalística, impedido de divulgar os seus folhetins, proibido de encenar as suas peças teatrais em nome do histriónico combate ao «heteropatriarcado», à perpetuação dos «estereótipos de género» e à «coisificação» da mulher. Imagino actrizes que interpretaram filmes inspirados na dramaturgia do autor de Toda Nudez Será Castigada - como Darlene Glória, Vera Fischer, Sonia Braga, Lídia Brondi e Christiane Torloni - a repudiarem aqueles temas e aqueles textos com gestos de indizível horror.

 

Nesta atmosfera de convento proibicionista, povoado de façanhudas madres superioras, as cenas de sexo são abreviadas ou mesmo suprimidas. Filmes que geraram furor nos anos 80, como Atracção Fatal, Noites Escaldantes e O Carteiro Toca Sempre Duas Vezes, seriam hoje rejeitados como infâmia. A nudez tornou-se residual - e quase interdita aos corpos femininos, evitando assim despertar a concupiscência de machos trogloditas, passe a redundância. Tornou-se moda corrente "pixelizar" seios nus para antecipar as tesouras censórias em patrulha permanente às redes sociais.

A "indústria do entretenimento" norte-americana passou a incorporar novas brigadas fiscalizadoras, inspiradas no defunto Código Hays e agora designadas «coordenadoras da intimidade», zelando para que nenhuma actriz sinta o mais leve incómodo sob as ordens de um realizador no cinema ou na televisão. Um Fellini ou um Bergman dos nossos dias veriam as respectivas carreiras abortadas à nascença. Já para não falar num Hitchcock.

 

Enquanto escrevo estas linhas, um cineasta de 83 anos - outrora prestigiado - filma no País Basco, longe da cidade natal que ajudou a projectar como ícone planetário. Demorou quase dois anos reunir financiamento mínimo para retomar a arte que sempre o apaixonou. A Rainy Day in New York - o seu 50.º filme - continua aferrolhado pela Amazon: a milionária multinacional considera que o lançamento da película poderia causar «danos de imagem» à sua marca.

São tempos duros: os novos empestados, como ele, ardem na fogueira sem lhes ser reconhecido o exercício do contraditório. Ou, se o fazem, ninguém os escuta. Porque estão condenados à partida. E não há recurso da sentença.

O mais penoso e lamentável é que tudo isto se passa na liberalíssima América, não num obscuro Estado totalitário.

 

Leitura complementar:

Este filme acaba sempre mal (19 de Janeiro de 2018)

O apedrejamento de Woody Allen (20 de Janeiro de 2018)

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