Novamente o fim do mundo
“Gabriel Malagrida assegurava no Juízo da Verdadeira Causa do Terramoto (1756), que só por castigo a face da omnipotência divina se tornara tão horrenda. Hereges, judeus e católicos, todos eram responsáveis pela vingança implacável de Deus. A causa próxima do flagelo radicava, no seu entender, nos mundanos e profanos modos de vida urbana, com os seus ”teatros, as músicas, as danças mais imodestas, as comédias mais obscenas, os divertimentos, as assistências aos touros, sendo tanto o concurso, que enchiam as praças, e as ruas todas; e nas igrejas, nas festas sagradas, nos sermões, nas missões apostólicas, por mais fervorosas que fossem não aparecia uma alma”. (…)
Na generalidade dos casos, o pregador, interpelando directamente os crentes, avoluma os terrores visíveis da destruição e as incertezas do povo em relação ao futuro.”
O Terramoto de 1755, Lisboa e a Europa, de Ana Cristina Araújo
Edição Clube do Colecionador dos Correios
Já aqui falei sobre os profetas do Apocalipse e da sua intenção de nos fazer mudar de comportamento. Sempre existiram e sempre existirão.
Querer procurar uma causa humana para algo natural é o cúmulo do antropocentrismo. Usar algo natural como argumento para sugerir o fim da produção intensiva do capitalismo é tão razoável como razoável era a convicção de Gabriel Malagrida.
Já todos vimos nas redes sociais comentários insinuando, ou até afirmando, que o bicho que nos faz ficar em casa era uma criação do homem. Para se acreditar nisto é necessário conseguir também acreditar que o génio humano é mais sofisticado que a natureza, o que é outro corolário idiota de uma visão antropocentrista do mundo.
Não somos assim tão capazes. A impotência em agir perante a realidade sempre foi um estímulo para a espécie humana, e certamente que depois disto a ciência continuará a avançar. E quem protagonizar a solução para este problema será certamente beneficiado pelo seu desempenho e ganhará dinheiro e vantagens com isso. Querer acabar com o capitalismo é discordar que isso assim funcione.
A dimensão da mortandade de outras pestes foi aumentada pelas fragilidades alimentares das populações, especialmente quando estas se seguiam a maus anos agrícolas. Até nesse ângulo, e graças ao capitalismo, nunca a população humana esteve tão bem preparada para lidar com o que está a acontecer.
Por isso, Malagridas dos dias hoje, ponham a viola no saco, olhem para história e lembrem-se que até este devoto pregador do sex XVIII acabou garrotado como herege no processo dos Távoras.