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Delito de Opinião

Notas (mais ou menos) soltas sobre a Turquia

Diogo Noivo, 26.06.18

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I. Tal como um pêndulo, o modo como a Turquia encara a Europa oscila entre dois extremos. De um lado, a Europa ameaçadora e cínica, pejada de preconceitos contra o povo turco, apostada em explorar as debilidades e as crises do país. Do outro lado, a Europa enquanto vocação, enquanto modelo político, económico e cultural admirável e que é imperativo adoptar. Tem sido assim pelo menos desde o início do século XX. Porque a política tem leis próprias, que não se submetem às da física, em diversos momentos da história contemporânea o pêndulo esteve nos dois extremos em simultâneo.

De facto, e apesar de ser um lugar-comum descrever a Turquia como um Estado entre dois mundos, Ocidental e Oriental, democrático e autoritário, laico e religioso, a verdade é que a vida política do país é feita de contradições e paradoxos, fruto de um percurso político e social invulgarmente rico e dinâmico, onde as sucessivas rupturas – muitas vezes sob a forma de golpes de Estado – disfarçam linhas de continuidade imperturbáveis.

 

II. A muito criticada deriva autoritária de Erdoğan não é inovadora. Assenta em procedimentos e medidas de um reportório que governa o país de forma intermitente desde a década de 1950, alternando momentos de liberalização política e económica com fases de estatismo, de corporativismo e de repressão de liberdades individuais. Porém, no passado, as detenções arbitrárias e multitudinárias, as alterações constitucionais, o ataque à liberdade de imprensa e às universidades, além de outras medidas de corte autoritário, foram impostas pelo “Estado paralelo” – termo usado para designar uma aliança informal entre forças armadas, poder judicial e burocracia pública, que se arroga a missão de defender os princípios fundadores da República da Turquia, interferindo com frequência na arena política sempre que entende que esta se afasta do perímetro do “republicanismo” criado por Mustafa Kemal Atatürk. Por outras palavras, um “Estado paralelo” jacobino que desfez resultados eleitorais (democráticos), impôs estados de emergência e limitou direitos fundamentais.

 

III. Por razões várias, Erdoğan começou a desmantelar o "Estado paralelo". No entanto, em vez de o substituir por instituições sólidas e independentes, optou por concentrar poder e entregar-se a ajustes de contas, empurrando a Turquia para um abismo autoritário inegável. 

 

IV. A aparente predominância do Islão na arena política também não é da lavra do AKP de Erdoğan, mas sim a consequência de uma política de islamização do kemalismo levada a cabo pelo “Estado paralelo” após o golpe militar de 1980 – uma forma de Islão político designada como “síntese turco-islâmica”, baseada numa mistura por vezes incongruente de nacionalismo étnico, revivalismo otomano, Islão sancionado pelo Estado, e o republicanismo laico de Atatürk. A islamização do país às mãos de Erdoğan é um mito. O Presidente turco limita-se a dar continuidade a uma tendência que o precede, intensificando e afrouxando o pendor “islâmico” de acordo com as circunstâncias. 

 

V. O AKP é o partido com mais tempo de permanência no poder desde que se celebram eleições livres na Turquia. Erdoğan, líder cuja imagem se confunde com a do próprio partido, superou Atatürk em longevidade no exercício de funções políticas, o que é sintomático do seu poder e relevância públicas.

No passado domingo, Recep Tayyip Erdoğan foi reeleito presidente à primeira volta e o AKP, que liderava uma coligação partidária às legislativas, obteve a maioria no Parlamento. Esta vitória faz com que entrem em vigor as alterações constitucionais aprovadas em 2017, das quais decorre um reforço dos poderes presidenciais à custa do parlamento. Conhecidos os resultados, Erdoğan descreveu-os como a consolidação de uma “transição” –  o Presidente parece querer emular Atatürk na fundação (no caso, refundação) do país. Hoje tem poder para tal. Más notícias. 

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