Nota de pesar
Olhava para o tecto acordada a pensar quanto tempo mais a minha cama suportaria este peso cetáceo que desenvolvera em pouco mais de dois meses. O sexto mês de gravidez impôs-me aquele ritmo lento e vaporoso de um hipopótamo saltando diafanamente de nenúfar em nenúfar. Supostamente teria pés no extremo das pernas, mas nãos lhes vislumbrava a inchação que sentia. Chamei o meu marido para me ajudar a sentar. Nada. Quem sabe não ouviu? Voltei a chamar e desta vez entrou no quarto de sopetão e meio titubeante. "Olha, morreu o Sá Carneiro! "Estás parvo?" "Não! Interromperam a programação para dar a notícia. Foi num acidente de avião."
Ajudou-me a ir para a sala. Sabia que eu, como o país, estava em choque. Era prematuro tirar ilações da pouca informação, mas ainda hoje diz que a primeira coisa que falei foi "Mataram-no."
Como muitos portugueses, eu tinha vivido as eleições com o entusiasmo esfusiante da consumação de uma vontade. Esperávamos grandes coisas, a mudança tão aguardada estava a chegar. Tínhamos o líder que era o nosso homem do leme, mas como diz a música, a vida é sempre a perder.
Com muita dificuldade, passei horas nas imensas filas dos Jerónimos, com lágrimas nos olhos e uma vela nas mãos, que ardeu antes de poder rezar um Padre Nosso. Um adeus, uma simples homenagem a um homem maior. Era imperioso.
...
Acabei de ver o último episódio da última temporada de Três Mulheres e voltei lá, àquela noite de 1980, quando morreu a honradez e Portugal perdeu o rumo.