Nem na morte há sossego
(créditos: daqui)
Reza a sua biografia que nasceu na Póvoa de Varzim em 25 de Novembro de 1845, vindo a falecer em 16 de Agosto de 1900 em Neuilly-sur-Seine, nos arredores de Paris. Da sua obra literária e carreira profissional muito se estudou, disse e escreveu. Os livros, as biografias, os artigos académicos estão aí para quem os quiser ler e ilustrar-se. A sua escrita, pela sua clareza, rigor, simplicidade, elevação estilística, estética e elegância, entre muitos outros atributos, constitui indiscutível património da língua portuguesa, dos portugueses, dos falantes daquela, constituindo os seus livros, crónicas, artigos, cartas, testemunho intemporal da sua magistralidade.
Após o seu decesso, em França, era natural que o seu corpo fosse transportado para Portugal e aqui viesse a ser sepultado, o que efectivamente aconteceu depois do seu cadáver ser levado para o Havre, de onde o embarcaram no África, a 13 de Setembro de 1900, para aportar a Lisboa em 17 de Setembro.
Chegado à capital portuguesa, aquilo que fora o Eça físico, mereceu umas segundas exéquias fúnebres. O seu corpo foi passeado por Lisboa entre o Terreiro do Paço e o Alto de S. João, num cortejo acompanhado por dezenas de carruagens, para que todos lhe pudessem prestar as devidas homenagens. Dar-lhe-iam, então, nesse local uma morada que se suporia definitiva. Não foi isso que aconteceu.
Em 1989, dado o estado de degradação do jazigo onde fora largado, acabaria por ser despejado do cemitério do Alto de S. João e remetido para um jazigo familiar em Santa Cruz do Douro, decisão que fazia todo o sentido, para ser colocado junto dos filhos e outros familiares, e que só não mereceria acolhimento, ainda assim, se com uns e outros estivesse desavindo.
Contudo, o sossego não lhe chegaria. E como bem recorda o queirosiano Gonçalves Guimarães, depois transcrito no Tempo Contado de Rentes de Carvalho, que neste pequeno resumo sigo, “Eça tem passado a morte a ter, de vez em quando, um funeral”.
E eis que em 2021 se apresentou uma proposta na Assembleia da República – em que outro lado poderia ser acolhida ideia tão genial dos proponentes se “a deputação é uma espécie de funcionalismo”, “é uma colocação, é um emprego”, lugar onde se ressona? – que viria a ser aprovada por unanimidade, pese embora a ausência do deputado do Chega, determinando “que os seus restos mortais de novo regressassem a Lisboa e fossem depositados no Panteão Nacional”.
Como houve quem, com toda a legitimidade, não concordasse, o assunto acabaria por ser discutido em tribunal, enquanto lá onde estiver a alma do escritor comentará, certamente com indisfarçável perplexidade e fina ironia, as discussões entre os descendentes, as voltas em que os seus restos se meteram, as burocracias, despesas e pregações que originou, para além do aproveitamento político dos faxineiros de serviço, mais de cem anos volvidos sobre a sua morte.
O facto de Eça já ter tido mais funerais que a rainha D. Maria II, tanto mais que não sou monárquico, em nada me aflige, concordando plenamente com a dúvida que se levanta, como republicano, sobre se tanto funeral acrescentará alguma coisa à obra do escritor.
Esta última pergunta encontra resposta no artigo que a revista Visão publicou esta semana, a propósito de mais este “funeral”, anunciando um trabalho sobre “[o] escritor que viveu acima das suas possibilidades”, com o título sugestivo de “A vida privada de um génio”.
O autor, certamente bem intencionado, cometeu inclusivamente a proeza de nos trazer um Eça especialista em bricolage que fazia “pequenos concertos [sic] e pinturas em casa”, façanhas que a revisão deixou escapar, coisa de somenos, num trabalho sobre o escritor e que passariam seguramente despercebidas aos leitores não fosse ter-se dado o caso daquele trazer informação sobre as suas “roupas extravagantes e impecáveis, as viagens exóticas, os hotéis mais luxuosos, os grandes jantares com os amigos, as mulheres proibidas e as mais fáceis”, para além de nos dizer que o defunto, embora ganhasse bem, vivia acima das suas possibilidades, porque "gastava ainda mais, acumulava dívidas, pedia dinheiro e favores”, acabando por colocá-lo num patamar, pelo prisma em que o considera nos hábitos, gostos e vícios, equiparado ao de alguns ex-governantes que ainda há pouco viviam a expensas de amigos, fundações e empresas públicas, e que se o não deixassem à porta de uma qualquer taberna em Baião, seguramente que não lhe franqueariam a entrada como português ilustre no edifício do Campo de Santa Clara.
Destarte, o Supremo Tribunal Administrativo, não conseguindo apurar a vontade do falecido, acabaria por resumir o conflito a uma disputa entre bisnetos, uns a favor, outros contra.
Desconheço o que poderia Eça pensar da iniciativa dos senhores deputados, do artigo da Sábado, do acórdão do STA, nem desta disputa familiar, em que todos, justiça lhes seja feita, pretendiam defender, e aí todos concordaremos, a obra, a memória e a dignidade do escritor.
Como cidadão, atendendo aos que já foram repousar para o Panteão Nacional, e aos que hoje fazem o seu caminho, preferiria que tivesse sido seguida solução idêntica à de Camões, de D. Nuno Álvares Pereira, de Afonso de Albuquerque, de Pedro Álvares Cabral e do Infante D. Henrique, com uma "solução memorial apenas evocativa (...), sem a presença física dos restos mortais". Se ainda for verdade que um dia todos seremos cinza e pó, para quê o flagelo da perpetuação sucessivamente encenada?
Concluída mais esta aventura, no meio de tanto forró à custa do Eça, temo que esta não tenha sido a última trasladação. Esse é o meu principal receio num país em que as mediocridades disputam ombro a ombro a liderança de minorias conjunturais.
E, pior que isso, que o drama deste exercício se repita tão logo o Panteão Nacional, que entretanto albergou eventos gastronómicos e de moda, se comece a tornar pequeno para acolher tantos portugueses, uns mais génios do que outros, com ou sem descendência conhecida, mas aos quais nem depois de mortos lhes é garantido pela República, já nem digo pelo bom senso que tão arredio anda, o direito fundamental ao sossego do seu cadáver, das suas ossadas, ou do que restar de ambos. Para gáudio e conforto dos vivos transitórios. Cento e vinte cinco anos depois é obra.