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Delito de Opinião

Negar o negacionismo

Pedro Correia, 26.03.21

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Sobreviventes de Auschwitz, um dos campos da morte nazis

 

Uma das características do nosso tempo é a contínua deturpação ou imprecisão da linguagem. Tenho pensado nisto a propósito da vulgarização da palavra negacionista. Abrangendo desde aqueles que classificam de mera epidemia os efeitos globais do novo coronavírus até aos que exprimem sérias dúvidas sobre as reiteradas restrições aos direitos, liberdades e garantias como os que experimentamos desde há um ano em Portugal, onde ontem o estado de emergência voltou a ser alargado, desta vez até 15 de Abril. Abrangendo desde aqueles que, por questão de princípio, recusam as vacinas até aos que advogam o direito de resistência - previsto na Constituição da Repúlica - a medidas tão diversas como o uso obrigatório de máscaras na via pública, a circulação entre concelhos vizinhos com índices de transmissão do vírus abaixo dos padrões de risco ou até a prática de pesca desportiva, que deve ser uma das actividades mais solitárias do mundo, como ontem lembrava José Gomes Ferreira na SIC.

 

Todos quantos fogem ao padrão dominante são hoje "negacionistas". O termo banalizou-se de tal maneira - e eu próprio, mea culpa, também já o utilizei aqui - que acaba por perverter o seu significado original, até no plano jurídico: o daqueles que negam expressamente o Holocausto, provocado pela barbárie nazi ou qualquer outro extermínio sistemático de populações inteiras. Por declarações negacionistas, Jean Marie Le Pen - pai de Marine Le Pen - foi condenado há cinco anos num tribunal de Paris. A negação do genocídio cometido pelo regime nacional-socialista está proibida na Alemanha, implicando sanções penais até aos cinco anos de prisão

Por cá, qualquer um é hoje apontado como "negacionista", até em títulos de jornal, por contestar a «existência de um facto documentado» ou propor «interpretações não fundamentadas de fenómenos históricos já estudados», como assinala o impreciso dicionário da Porto Editora, sempre pronto a acolher a última moda lexical.

A desconfiguração do significado genuíno da palavra produz um péssimo efeito: a proliferação de "negacionistas", conduzindo à negação do negacionismo. 

 

Por casualidade, ando a ler um excelente livro da escritora romeno-germânica Herta Müller, galardoada em 2009 com o Nobel da Literatura. Recorda ela, nestas páginas d'O Rei Faz Vénia e Mata (Texto Editora, 2011), que muitos presos políticos na Roménia de Ceausescu eram executados pela sinistra Securitate e atirados ao rio em simulação de afogamento. Em conversa com um amigo estrangeiro, já no exílio, ele questionou, aludindo ao idioma romeno: «Mas que língua é essa que nem tem uma palavra para cadáver de pessoa afogada?»

É este também o tempo de inventarmos novas palavras para novas situações. E de recusarmos com firmeza a perversão de outras, desviando-as do seu sentido original.

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