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Delito de Opinião

«Não tens pernas para andar?»

Pedro Correia, 02.04.15

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 Maria Isabel e Manoel de Oliveira no dia do casamento (4 de Dezembro de 1940)

 

Há pessoas que imaginamos imortais. Manoel de Oliveira - contemporâneo de Griffith, Chaplin e Eisenstein - começou a trabalhar na Sétima Arte ainda no tempo dos filmes mudos e, enquanto actor, teve um papel de destaque na primeira longa-metragem sonora inteiramente rodada em Portugal (A Canção de Lisboa, 1933). Com uma carreira que se prolongou por oito décadas, obteve o reconhecimento generalizado dos seus contemporâneos - algo de que poucos artistas se podem gabar. Reconhecimento merecido: basta lembrar que é dele o melhor filme português de sempre.

Mas agora, que acabo de saber que o cineasta rumou enfim à eternidade, só me apetece recordá-lo num episódio bem prosaico e terreno. Ele e a esposa, Maria Isabel, vinham com frequência a Lisboa e costumavam instalar-se num hotel situado nas imediações do Marquês de Pombal. Nessas ocasiões almoçavam num restaurante da Rua Eça de Queirós, o Cacho Dourado, onde se come muito bem a preços módicos.

Eu, que à época trabalhava no Diário de Notícias, também costumava almoçar ali. E já me era familiar a presença do simpático casal, que jamais revelava o menor indício de petulância ou presunção. Mestre Oliveira teria 97 ou 98 anos por essa altura e, embora usasse bengala, percebia-se que não necessitava verdadeiramente dela.

Num certo dia, após um almoço tardio (em que não dispensou um copinho de vinho, que apreciava), o cineasta quis saber o que havia para sobremesa. O empregado fez um gesto vago em direcção a uma vitrina que se encontrava ao fundo da sala. E, em jeito de doce repreensão, logo a esposa do cineasta disse ao marido, com aquela intimidade própria dos casais que há muito aprenderam a cultivar a arte do convívio doméstico: «Não tens pernas? Vai lá ver...»

Acto contínuo, mestre Oliveira dirigiu-se à vitrina dos doces. Em passo ligeiro, sem que à primeira vista ninguém lhe atribuísse sequer menos vinte anos do que a data inscrita no seu bilhete de identidade.

Ao tomar conhecimento do seu desaparecimento físico, é deste singelo episódio que me lembro. E volto a sorrir à simples menção daquela frase que ficou a ecoar-me na memória: «Não tens pernas para andar?»

Teve-as até ao fim.

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