Não somos todos 'Charlie'
Percebo e louvo as manifestações espontâneas de mágoa e protesto pelo morticínio em França. Mas recuso o rótulo simplista que agora circula a garantir que "todos somos Charlie [Hebdo]".
Por ser falso.
Não é verdade que estejamos todos do mesmo lado: os dramáticos acontecimentos desta semana em Paris comprovam isso. É tempo de encararmos esta evidência. Sem ilusões de qualquer espécie.
Há quem seja inimigo figadal da liberdade de expressão e da liberdade de imprensa - aliás já hoje ameaçadas por um extenso cardápio de interditos em nome da correcção política, algo que ficou bem simbolizado na recusa sistemática do New York Times e da CNN de reproduzirem, ao menos para efeitos de contextualização da notícia dos assassínios, qualquer dos polémicos cartunes do Charlie Hebdo diabolizados pelos extremistas islâmicos.
Há quem se assuma como adversário declarado das sociedades abertas e das democracias liberais vigentes na esmagadora maioria do continente europeu.
Há quem não hesite em recorrer ao homicídio como "argumento" político e transforme o sangue alheio em troféu de caça ideológica.
São pessoas que nasceram neste continente, que em muitos casos beneficiaram do apoio do Estado Social europeu e à primeira vista se parecem com qualquer de nós. Podem cruzar-se connosco na rua ou num centro comercial.
Mas não nos iludamos: é abissal o quadro de valores que nos separa.
Estamos perante indivíduos que não se limitam a combater as liberdades individuais: pretendem implodir a nossa matriz civilizacional e estão dispostos a recorrer a qualquer meio para atingir esse fim. Espalham o pânico com uma facilidade estonteante, fazem do medo um poderoso aliado dos seus desígnios e elegem o terror como senha de identidade.
Deixemo-nos de lirismos beatíficos: é inequívoco que vivemos tempos de fracturas essenciais. Temos contra nós - e no meio de nós - quem presta tributo à barbárie aproveitando as debilidades do sistema democrático ocidental, que por vocação é capaz de integrar sem estigmas até aqueles que estão mais determinados em destruí-lo.
Não somos todos "Charlie".