Saltar para: Post [1], Comentários [2], Pesquisa e Arquivos [3]

Delito de Opinião

Não será colapso, mas mudança: reflexões sobre o Brexit

Luís Naves, 24.06.16

James-Gillray-cartoon-009.jpg

 

1

Os extremistas cavalgam o descontentamento e querem o fim da Europa, mas o seu triunfo é improvável. Nigel Farage, a figura mais tóxica da política britânica, foi um dos vencedores do referendo. O efeito dominó de consultas populares é uma possibilidade, mas isso implicaria o triunfo generalizado dos populistas e radicais. A exigência de fazer referendo em outros países parte de formações de extrema-direita e de partidos populistas mais preocupados com o seu crescimento eleitoral: vão ganhar em todo o lado? É evidente que não. Como refere Pedro Correia, no post anterior, a Europa não pode sobreviver governada por Marine Le Pen, Pablo Iglesias, Frauke Petri, Gábor Vona, Beppe Grillo, Geert Wilders, Norbert Hofer, mas quem quereria viver num local assim? A única verdadeira ameaça existencial para a UE será a vitória de Marine Le Pen nas presidenciais francesas da Primavera.

2

A saída do Reino Unido da UE é um processo de negociação que se adivinha difícil para os britânicos e levará talvez meia dúzia de anos (no mínimo, dois). É provável que haja uma crise financeira imediata e efeitos a curto prazo no investimento, na banca, no crescimento e no emprego, isto dos dois lados do Canal da Mancha. Pode até haver recessão, mas por agora não há alterações legislativas de fundo. A experiência de saída é inédita e terá efeitos visíveis: se esses efeitos forem insignificantes, então a saída de mais um país não constitui uma catástrofe; se forem acentuados, o exemplo britânico dirá aos outros países “não façam o mesmo”.

3

Os eleitores britânicos votaram por dois motivos, medo da imigração descontrolada e recuperação da soberania perdida. Isto sugere que os europeus deviam endurecer as políticas de imigração e tentar fazer reformas de devolução de poderes aos parlamentos nacionais. No fundo, em ambos os casos, as opções são limitadas. A primeira situação depende do acordo com a Turquia e não há muitos poderes que possam ser devolvidos.

4

Alguns autores, como é caso de Luís Menezes Leitão, em post anterior, explicam que a Europa tem o problema de ser uma construção de burocratas sem ligação aos eleitores ou respeito pela democracia. Na minha leitura, a UE é uma organização supranacional controlada pelos Estados que nela participam. As decisões mais importantes são tomadas pelo Conselho Europeu, órgão constituído apenas por líderes eleitos, que defendem interesses nacionais, também interesses colectivos, e que por isso respondem perante os seus eleitores.

5

A UE está a construir um mercado único gigantesco e há um elemento que os defensores da saída britânica não explicaram: como é possível que o Reino Unido continue a ter acesso total a esse mercado sem pagar a sua quota e mantendo a influência legislativa? A prazo, Londres perderá poder financeiro, terá de retirar os seus funcionários de Bruxelas e acabará por ter influência limitada nas decisões. Em relação ao défice democrático, também não há soluções mágicas: eleger o Presidente da Comissão? Criar um Senado? Dar mais poderes ao Parlamento Europeu? Tudo isto retira influência aos Estados.

6

Os eleitores ingleses convenceram-se de que o seu parlamento perdia poderes. Todos os países adoptam legislação europeia e os parlamentos têm um papel cada vez menor na definição das leis nacionais, sobretudo na área económica. Será que o parlamento britânico pode recuperar a influência perdida? Se o fizer, a legislação britânica divergirá profundamente da europeia, mas isso terá um custo, a perda progressiva de acesso ao mercado único europeu. Sem convergência legislativa, as empresas terão relutância em investir, o comércio com o resto da Europa será mais complicado, haverá menos empregos com ligação ao outro lado da Mancha. Este processo será lento, mas num único sentido. O Reino Unido fica mais independente, mas terá de procurar a sua prosperidade em mercados de outras paragens.

7

A Europa tem um problema imediato para resolver: as deficiências da moeda única. Há um conflito entre países em torno do cumprimento do Tratado Orçamental, do reforço da União Bancária e da definição de elementos de união política. Este último ponto significa reforço dos poderes do Eurogrupo (que não é uma estrutura tecnocrática, antes envolve ministros das finanças eleitos, que respondem perante os seus eleitores). Terá de haver escolhas imediatas: o TO é para ser cumprido? Os países deixam definitivamente de usar a banca para gerir interesses do momento, como se faz em Portugal? O Eurogrupo vai ter mais poder? Há alterações dos Tratados na área da moeda única? Os países que não se aguentam na zona euro saem dela?

8

O Reino Unido está fora da zona euro, mas a discussão anterior é mais fácil sem os ingleses, sobretudo na parte da banca. Também é mais fácil resolver a segunda crise, Schengen, que é neste momento a grande fonte de irritação dos eleitores europeus, por causa das migrações descontroladas do ano passado. É natural que haja alterações na posição da Alemanha e concessões do Grupo de Visegrad, mas esta negociação é difícil e os países de leste mostram grande ressentimento em relação à condescendência com que foram tratados no passado. A saída dos britânicos também torna mais fácil o fim das sanções à Rússia.

9

Imaginemos por um momento a Europa sem a UE. O mercado único entraria rapidamente em colapso, a livre circulação seria improvável e os países ricos recusariam pagar fundos estruturais aos pobres. A política agrícola comum seria extinta e muitos agricultores iriam imediatamente à falência. Para além da perturbação de todo o comércio, talvez não fosse possível assegurar a alimentação dos europeus. Haveria conflitos cada vez mais graves em torno de comida, direitos de pescas, energia, além de conflitos industriais, limitações à exportação de certos produtos, desemprego em massa, juros impossíveis, preços exorbitantes. Progressivamente, estes conflitos alastravam a questões étnicas e surgiam movimentos de libertação, culpabilização das minorias, fragmentação de países, o regresso lento aos velhos mecanismos do equilíbrio de poder. Seria mais um suicídio europeu: fronteiras fechadas, todos mais pobres, os loucos a tomar conta do asilo. Em resumo: é impensável.

10

A saída da periferia é uma coisa, outra bem diferente é o colapso desta aliança de nações. Sem União Europeia, que se baseia na definição de cedências de soberania, os países europeus serão irrelevantes a nível global. Separada da Alemanha, a França terá a sua independência ameaçada; separada da França, a Alemanha estará isolada. O interesse vital destes países é que a UE continue. Sem os ingleses na equação, serão reforçados os laços que unem o eixo Paris-Berlim. As regras do clube vão ser mais restritivas no núcleo duro e mais flexíveis na periferia. É humano, quando um exército se encontra em perigo, cerra fileiras e sacrifica as unidades que estão mais afastadas do campo de batalha e não podem ser ajudadas. Daqui a alguns anos, a UE será provavelmente uma construção a várias velocidades, com uma vanguarda de países muito integrados, uma periferia de países mais pobres e algumas nações associadas, entre elas a Inglaterra.

2 comentários

Comentar post