Saltar para: Post [1], Comentários [2], Pesquisa e Arquivos [3]

Delito de Opinião

Não se deixem cair na tentação

Luís Naves, 06.08.16

Pro-Evolution-Soccer-UEFA-Euro-2016-France-Feature

 

Uma frase: "Não excluo legislativas antes das autárquicas".

Rui Rio, ex-dirigente do PSD

Diário de Notícia, 6 de Agosto de 2016

 

Um post: Francisco José Viegas escreve aqui sobre a hipocrisia política e elogia as raras vozes que vão remando contra a maré.

 

A semana

Domingo, 30 de Julho de 2016

O País seguiu para férias e, como se toda a gente ouvisse um sinal sonoro, desapareceram de repente os problemas da crise. Tirando os incêndios, que infelizmente fazem parte da paisagem de Verão, chega o tempo das histórias positivas: famosos a banhos, políticos descontraídos, dinheiro a rodos, abundantes trabalhos sazonais e festas de ricos. Subitamente, anda toda a gente feliz e a esquerda radical já não critica como antigamente. Os desempregados desapareceram e nenhum jovem foi forçado a emigrar. As redes sociais descansam umas semanas e não sentiremos o seu veneno e frenesim. No intervalo de Agosto percebe-se melhor como o debate político é uma repetição de mais do mesmo, com umas pitadas de treta.

 

Segunda-feira, 1 de Agosto de 2016

A campanha eleitoral nos EUA está a tornar-se invulgarmente negativa, mesmo para os padrões americanos. Donald Trump troçou de uma família de origem paquistanesa que perdeu um filho no Iraque e começa a ser penoso assistir às intervenções malévolas do candidato republicano. Ao hostilizar a poderosa instituição dos combatentes e veteranos, Trump escandalizou outro influente sector da sociedade americana. Um incidente igual a este teria liquidado qualquer campanha anterior de um candidato à Casa Branca, em qualquer eleição que não esta. Trump tem sobrevivido às piores controvérsias mas, neste caso, está a sofrer uma queda nas sondagens, com perdas em estados decisivos, não se tratando ainda de uma derrocada. Sendo o candidato fora do sistema, Trump pode dizer o que quiser, mas esta suposta invulnerabilidade talvez não seja mais do que uma ilusão. O Partido Republicano ficou desfeito com a escolha de um candidato que não respeita os seus valores tradicionais. As críticas tornam Trump mais atrevido e os seus apoiantes mais convictos de estarem a ser manipulados por elites financeiras e políticas. Se cair na tentação de continuar este jogo de casino, Trump arrisca-se a uma derrota humilhante. Caso seja eleito, mesmo após atacar tanta gente, o novo presidente será contido pelas restantes instituições da democracia americana, tendo mesmo assim amplas oportunidades para fazer estragos sérios, criar divisões e frustrar aliados. Como escreve Robert Kagan neste artigo há algo de incrivelmente errado com o candidato republicano, que dispara em todas as direcções, como se fosse um pistoleiro do velho oeste em busca de notoriedade: e só diz coisas tremendas, por exemplo, que os Estados Unidos são um país do terceiro mundo, que Hillary Clinton é o diabo.

 

Terça-feira, 2 de Agosto de 2016

Entraram em vigor novas regras para calcular o imposto municipal sobre imóveis (IMI), pago pelos proprietários, e as alterações são delirantes: os imóveis terão um agravamento de imposto em função da exposição solar e em função das vistas, entre outros elementos pouco objectivos, que introduzem componentes discricionárias na avaliação das finanças. Os socialistas responderam à reacção negativa da direita com a habitual agressividade, à qual juntaram argumentos pouco convincentes (que não há nada de novo, que se pretende introduzir justiça): afinal, os imóveis com boas vistas e boa exposição solar já são mais caros, portanto, tendem a pagar mais IMI; a partir de agora, pagam duplamente. Francisco Sarsfield Cabral observa, neste texto: fracassou o plano do governo de estimular o consumo e pôr a economia a crescer mais depressa; resta a via dos impostos.

 

 

Quarta-feira, 3 de Agosto de 2016

O secretário de Estado dos Assuntos Fiscais, Fernando Rocha Andrade, foi assistir em França a jogos da selecção nacional de futebol a convite da Galp, empresa que tem um litígio fiscal com um organismo sob tutela do próprio secretário de Estado. A história transformou-se no escândalo político da semana. O spin governamental pôs a circular notícias em que se misturavam outros casos, incluindo de três deputados do PSD que teriam viajado a convite do empresário Joaquim Oliveira. Essa notícia era falsa, embora fosse verdade que alguns deputados justificaram a falta na Assembleia da República com a desculpa de ‘trabalho político’.

No que respeita à vertigem do futebol, Marcelo Rebelo de Sousa e Passos Coelho parecem ter compreendido a importância de um comportamento cuidadoso. O Presidente foi criticado por querer pagar do seu bolso a despesa do Falcon e o líder do PSD foi ridicularizado por não comparecer na recepção em Belém à equipa nacional. Em resumo, para a maioria dos comentadores, tratou-se mesmo de trabalho político. É bem estranha esta obsessão do regime com o futebol, mas a situação de Rocha Andrade tem aspectos que vão além da simples tentação de aparecer na fotografia ao lado dos heróis ou no palco dos sonhos e dos triunfos. No futuro, o secretário de Estado não poderá decidir sobre assuntos que envolvam a Galp, tem portanto uma limitação à sua autoridade e não se compreende a razão de se manter em funções.

Rocha Andrade não podia aceitar o convite da Galp, pois o fisco tem um código de conduta que impede os seus membros de aceitarem qualquer oferta. Se os funcionários não podem aceitar presentes, o secretário de Estado também não deve poder. O caso é de longe o mais grave porque ele é o responsável máximo pela arrecadação de impostos, tem de ser um exemplo para todos os contribuintes, estar acima de qualquer suspeita. Se cada cidadão paga impostos e cumpre as regras, mais importante se torna a responsabilidade de arrecadar essas verbas. Cabe aos políticos dar o exemplo, não o inverso. O resto é hipocrisia da mais refinada.

 

Quinta-feira, 4 de Agosto de 2016

O caso Rocha Andrade motivou a resposta imediata do Governo. Não há mais discussão, assunto encerrado. É também assim nas coisas graves, não se passa nada na economia, onde surgem diariamente notícias que deviam preocupar toda a gente. A UTAO está pessimista em relação à execução orçamental e a agência de notação Fitch publicou uma análise arrasadora, que aponta para uma previsão de défice de 3,4% e uma taxa de crescimento de apenas 1,2%. Num governo de direita, haveria manchetes para semanas, mas o duplo critério jornalístico chuta para canto estes problemas, embora a realidade tenha a mania teimosa e embirrante de se impor às fantasias.

Parece assim cada vez mais provável que a geringonça se rompa por um motivo exterior. O deslize orçamental ameaça as taxas de juro da dívida e pode resultar em exigências de Bruxelas de cortes na despesa, que seriam intoleráveis para os partidos da esquerda. O Governo continua a dizer que não cumprirá a recomendação da comissão feita na semana anterior, de aplicar medidas adicionais, fingindo ignorar que existe uma ameaça de suspensão dos fundos comunitários de 2017. Talvez os socialistas não contem estar no Governo nessa altura. Para os analistas, o acordo entre os quatro partidos está sólido e quem romper perde imensos votos. Talvez tenham razão, mas se todas as noivas saírem ao mesmo tempo, a compreensão dos convidados irá apenas para elas; quem fica ridículo é o noivo deixado no altar, deve ter um problema qualquer.

 

Sexta-feira e madrugada de sábado, 5 e 6 de Agosto de 2016

Começaram os Jogos Olímpicos do Rio de Janeiro, com muitas notícias sobre problemas de organização e protestos na rua. Um pouco antes da cerimónia de abertura, na televisão portuguesa, ouvia-se uma manifestante protestar contra os gastos, mas a culpar o actual poder, que ela considerava golpista. Os meios de comunicação já não pensam um pouco naquilo que transmitem, não houve um momento de dúvida, o repórter não conseguiu travar a diatribe, lembrando à senhora indignada que os gastos tinham sido feitos no tempo da administração de Dilma. Vivemos num tempo de ‘narrativas’, em que uma boa história nunca deve ser interrompida pela realidade. No Inverno do Rio, não há mosquitos para transmitir o vírus Zika, mas que esse pequeno detalhe não estragou a boa história de haver por ali uma séria ameaça de contaminação. Os Jogos Olímpicos são hoje uma extravagância que os países organizadores pagam durante décadas. Para um país como o Brasil, será uma conta calada.

 

Um livro: Definetely Maybe, de Arkady e Boris Strugatsky

À colecção de uma editora americana foi dado o nome de ‘Biblioteca do Neversink’, referência extraída de Herman Melville, sobre a biblioteca de um navio de ficção. A ideia é a seguinte: os livros mais agradáveis que lemos são geralmente os que encontramos por acaso. Li vários livros assim, brilhantes, esquecidos, menos famosos do que tantos outros, mas igualmente fascinantes. Um dia, encontrei por acaso um livro em que penso muitas vezes, Apepe, de Ferenc Karinthy, que não existe em português, mas podia citar outros: Coming Up for Air, de George Orwell, que julgo não estar editado em Portugal; Enviado Especial, de Evelyn Waugh, uma divertidíssima sátira sobre jornalismo; ou ainda Jogo da Cabra Cega, de José Régio, obra-prima infelizmente esquecida e que também encontrei por acidente.

A minha biblioteca do Neversink tem volumes de Laszlo Krasznahorkai, Dino Buzzati, Joseph Roth, Raul Brandão, Paul Bowles, Vergílio Ferreira, Romulo Gallegos, tem um Dostoievsky dos menos citados, ganhou agora este Definitely Maybe, a história de um cientista soviético que, à beira de uma grande descoberta, e por qualquer razão misteriosa, é interrompido por toda a espécie de peripécias parvas, ruídos insistentes e personagens ambíguas.

Os dois autores são famosos na ficção científica, mas esta sua obra supera o género. Os irmãos Strugatsky usam todos os mecanismos populares, com referências de cultura e diálogos de qualidade acima da média. O ritmo e o suspense obrigam a continuar a leitura, encontramos personagens cómicas e cínicas, subtis críticas políticas e também é usado o mecanismo das histórias de espionagem, com pistas falsas e cambalhotas lógicas que enganam o leitor à maneira do grande John Le Carré, que é expressamente citado.

Em Portugal, este livro foi publicado nos anos 90, com título Até ao Fim do Mundo, numa colecção de ficção científica da Europa-América. Teve, por isso, dificuldade em encontrar os seus leitores. Para os fanáticos do género, será demasiado intelectual e decepcionante, pois dispensa os lugares-comuns habituais da ficção científica, que geralmente é uma forma de fantasia onde a realidade foi cuidadosamente disfarçada. Para quem não gosta deste tipo de literatura, Até ao Fim do Mundo tem tudo: inteligência, ideias, modernidade, simplicidade na estrutura e no estilo, com o brinde inesperado de colocar um sorriso permanente na cara do leitor.

Este romance é também um bocadinho mais subversivo do que parece. Questiona o domínio do politicamente correcto, especula em torno do tema das conspirações, dos poderes ocultos e do respectivo controlo do pensamento. Coloca o problema da resistência fútil e explica como a desistência pode ser uma grande tentação. Estará mesmo uma super-civilização a interferir no desenvolvimento científico da humanidade? Tudo indica que sim, mas nas certezas convém colocar um talvez. O facto é que se tornou difícil pensar: somos constantemente interrompidos por minúsculas preocupações da vida contemporânea. Este livro, escrito numa sociedade onde havia o peso do sistema político totalitário, é hoje muito compreensível para os contemporâneos da menos poética era da internet e dos telemóveis.

 

9 comentários

Comentar post