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Delito de Opinião

«Não na distância. Aqui, no meio de nós. Brilha»

Pedro Correia, 21.09.21

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É preciso morrer um Presidente da República para ouvirmos Mozart e recitação da melhor poesia nos nossos canais de notícias. Aconteceu domingo passado, no claustro do Mosteiro dos Jerónimos, perante os restos mortais de Jorge Sampaio. Cerimónia sóbria e digna, que enobrece o Estado português: mal vai o país que seja incapaz de honrar aqueles que bem o servem.

Foi um momento admirável, a vários títulos. E as televisões estavam lá para mostrar. Por instantes alheadas das doses infindáveis de música pimba e das intermináveis tricas em torno da equipa do Benfica que preenchem horas e horas e horas de emissão.

Vera e André Sampaio, que muitos de nós recordamos adolescentes, quando o pai desempenhava funções como secretário-geral do PS e presidente da Câmara de Lisboa antes de ser eleito Chefe do Estado, tiveram intervenções comovidas e comoventes. Agradecendo a presença das personalidades ali reunidas, com destaque para o Rei de Espanha, e as expressivas mensagens de Timor-Leste recebidas em vídeo.

Sampaio, que em vida dividiu águas no seu próprio partido, ergueu-se post mortem como traço de união entre portugueses de diversos matizes. Foi o seu último serviço prestado à República que jurou servir.

Lá estava, a confirmá-lo, o actual inquilino do Palácio de Belém. Marcelo Rebelo de Sousa – que teve o primeiro grande combate político da sua vida numa corrida autárquica em Lisboa em que foi derrotado por Sampaio, já lá vão 32 anos – mostrou-se à altura da circunstância com outra notável peça oratória. Na linha da que já pronunciara no 25 de Abril.

«Para Jorge Sampaio, Portugal nunca foi uma abstracção. Nunca foi uma fortaleza fechada, egoísta e distante. Para Jorge Sampaio, foram – um a um – os milhões de portugueses», declarou o católico Marcelo neste vibrante elogio fúnebre ao ateu Sampaio, enterradas as contendas do passado.

É nestas ocasiões que os melhores repórteres, atentos e cultos, fazem a diferença. «Atrevo-me a destacar, nesta cerimónia, as intervenções dos filhos, porque herdaram claramente do pai a eloquência e a capacidade de, num dos dias mais difíceis das suas vidas, falarem ao coração do país», observou Débora Henriques, destacada pela SIC para a cobertura das exéquias nos Jerónimos. Com palavras precisas e sentidas, bem pronunciadas e que fogem à vulgaridade.

Palavras adequadas naquela manhã de luto marcada por outros momentos carregados de simbolismo. A recente viúva Maria José Ritta já no cemitério do Alto de São João, beijando a bandeira nacional que o Estado português lhe entregou das mãos de Marcelo. A maestrina Joana Carneiro dirigindo a Orquestra Sinfónica Portuguesa em trechos que certamente emocionariam o melómano Sampaio. Maria do Céu Guerra recitando tão bem o magnífico poema de Jorge de Sena, autêntico hino à transcendência perante a fragilidade humana: «Uma pequenina luz bruxuleante e muda / Como a exactidão, como a firmeza, como a justiça, / Apenas como elas, / Mas brilha. / Não na distância. Aqui, / No meio de nós. / Brilha.»

 

Texto publicado no semanário Novo

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