Não consegui pensar num título sem palavrões...
Se dependesse deste tipo de argumento, a direita estava tramada. Soma-se o número de pensões (como se fosse o número de pensionistas) com o de desempregados, funcionários públicos e cronistas políticos, chega-se ao número de seis milhões e conclui-se que Portugal depende do Estado e quem depende do Estado vota à esquerda, enquanto quem não tiver nada a ver com o Estado, se quiser defender os interesses pessoais, votará à direita. Considera-se que as pessoas não têm famílias, casam dentro do seu sector social e não têm pais pensionistas. O delírio e a lógica da batata vai por ali fora, a começar no título do artigo, O Partido do Estado (como se houvesse algum partido exterior, a flutuar no limbo).
Há só seis milhões de pessoas que dependem do Estado? O número até parece pequeno, pois as empresas privadas têm esgotos, precisam de estradas, escoam os produtos pela ferrovia; os ricos vão a São Carlos e alguns trabalhadores dessas empresas não-estatais até podem ter os filhos na escola pública, precisam por vezes de ir ao hospital e a polícia faz frequentes rusgas lá no bairro para os livrar da droga. E já ninguém dispensa iluminação pública à porta, abastecimento de água camarária, até lá na barraca têm disso.
Sem mais ironias. A separação de Estado e não-Estado como se fossem esferas antagónicas não é uma leitura neo-liberal, mas neo-realista. O articulista não entendeu o problema: o Estado cresceu demasiado depressa e não há economia para o sustentar com crescimento a tal ritmo, pelo que é preciso reformar o próprio Estado e essas reformas são difíceis de fazer, pois afectam os interesses de quem depende de serviços que mais ninguém faz. E, em certos casos, toda a gente pode depender desses serviços.
Mas a parte mais irritante do artigo de João Miguel Tavares é a presunção de que um desempregado, por estar desempregado, vota à esquerda, ou a ideia peregrina de que um funcionário público, se quiser defender os seus interesses de classe, deve votar à esquerda e será um “herói” se votar à direita. Isto é escrito por um autor que certamente usa serviços do Estado e exige ser bem tratado, na sua qualidade de cidadão com plenos direitos, incluindo o de escrever imbecilidades. Levando este tipo de raciocínio ao seu corolário lógico, todos os médicos, juízes, professores, pensionistas, militares, polícias, desempregados e respectivos periquitos votam à esquerda ou devem fazê-lo se quiserem manter os seus direitos e postos de trabalho (como se alguém, excepto o autor, quisesse alterar isso). Portanto, serão heróis se votarem nos partidos da direita. Do outro lado, estão os 3,8 milhões de empregados do sector privado, cujo interesse de classe está em votar contra a esquerda. Presumo que serão ‘traidores’ os que votarem a favor. Enfim, a insistir neste tipo de argumentação alucinada, a direita não irá longe, o que talvez explique que este cronista seja tão elogiado e citado.