Nadiya
Quando entrou notei-a mais apreensiva do que de costume. A Nadezdha (Nadiya) está connosco vai para oito anos e nunca foi de uma alegria esfuziante. Sempre reservada, compenetrada no trabalho, pontual e extremamente educada, é fácil gostar dela, do seu brilho calmo e suave, do sorriso fácil e discreto.
Nessa manhã uma agitação comovida tinha tomado conta da emoção controlada com que sempre se apresentou.
Sentou-se e chorou. Não tinha conseguido dormir. A família na Ucrânia, que teima em não arredar pé, está bem. Por enquanto ainda estão longe dos palcos de todos os conflitos. Já com a melhor amiga acontece o inverso. Conseguiram falar uns minutos por telefone e as notícias foram devastadoras. A destruição é grande. Monumentos, fábricas, escolas, hospitais, prédios de habitação. “Era uma cidade tão bonita, tia.” Comida e água potável não têm. "Quem tem quintas, tem legumes, mas quem mora em andares não tem o que comer."
Pára para pensar em português a ver se faz sentido, quando lhe dói pensar naquilo que não faz sentido seja para quem for.
“Diz a minha amiga que desapareceram dez meninas da cidade, dez ucranianas e que durante três dias não se soube delas. Foram depois encontradas enforcadas; violaram-nas e depois enforcaram-nas.” A memória gélida e arrepiante do Armageddom do Leon Uris atropelou-me e sufocou-me as palavras presas à lembrança daquele “frau, komm” tão longe no tempo e tão depressa reprisado pela bestialidade dos homens que fazem a guerra. Ficámos caladas a pensar. Ela chorava de mansinho. Não me chegaram as lágrimas, apenas uma raiva imensa, um nojo desmedido pela barbaridade. O medo. O mal.
Pedi um chá. Perguntei se poderíamos de algum modo ajudar, fazer chegar à amiga dela e mais habitantes da cidade víveres e outros artigos de primeira necessidade.
Disse que não. Que os ocupantes não deixam nem entrar nem sair pessoas ou bens. Abatem-nos a tiro, como à veterinária de vinte e sete anos que saía todas as manhãs para dar arroz e batatas aos animais que tinha recolhido quando os donos fugiram ou desapareceram.
“Não parece real, tia. Tudo isto, sabe?"
Impotentes, rezamos um Pai Nosso. Não sei se os ortodoxos rezam o Pai Nosso, mas a Nadiya pareceu sentir-se mais alentada.
Quis ficar. Quis continuar a trabalhar. Mais um dia a distribuir sorrisos discretos enquanto o mundo que conhece se esfrangalha na lonjura das planícies da sua terra.
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