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Delito de Opinião

Na Sopa da Paz(5) - Contos do feijão

Maria Dulce Fernandes, 05.03.21

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A Cila era castiça. Boa pessoa, simples, trabalhadora,  alegre e divertida, cantarolava de espanador na mão e tinha sempre adágios na ponta da língua fosse qual fosse a circunstância,  alguns deles adaptados por si às ocasiões, como aquele com que nos presenteou numa tarde de descasca, com toda a família sentada à volta da grande alcofa de palha cheia de vagens riscadas de feijão :“Feijãozinho de bagar! De bagar se vai ao longe!!" E nós riamos divertidos e a Cila continuava a falar, a falar, enquanto as suas mãos dobravam e rasgavam as vagens com a rapidez e eficiência que muitos anos de labuta lhe conferiam. Era uma força da natureza e talvez por isso praticasse religiosamente aquela máxima de Lavoisier em que nada se cria , nada se perde e tudo se transforma. Castanhas ressequidas? Põem-se de molho e faz-se puré! De um resto de sopa fez arroz de feijão, porque , dizia, para o sabor basta o cheiro. Era o génio das sobras, muito antes da prática se tornar moda, com algumas transformações no mínimo rocambolescas, tal a sua genialidade.

As nossas sopas de feijão catarino, segundo receita da minha bisavó Júlia , levavam feijão, tomate, cebola, alho, uma folha de louro, sal e azeite. Em dia de sopa era toda a gente lá em casa a ajudar a encher a grande panela. Depois de ter os legumes bem cozinhados, eram passados por um enorme  passe-vite de folha herdado da bisavó Júlia - o carrossel -  que esteve em serviço até se partir, tendo sido substituído por um outro em inox que não se comparava ao original, quer em tamanho, quer em eficiência.  Depois com o advento da varinha mágica, o passe-vite passou a funcionar apenas como crivo. 

Pessoalmente, não ponho tanto feijão.  Substituo metade (0,250kg) por meia curgete , cem gramas de abóbora e uma cenoura pequena. Não fica tão forte, mas também não fica tão boa.

A Cila adorava aquela sopa e por isso havia sempre uma panelinha guardada para ela. Tanto quanto sabemos aquela sopa, escura e cremosa, comia-a a Cila de mil maneiras, até como molho de bife.

Não há colher de sopa de feijão catarino que possa saborear sem que as lembranças me tragam a voz tagarela, o sorriso e a alegria que sempre nos transmitiu.

Dizer que a Cila era um ponto é a mais pura verdade, mas é um dos grandes pontos que, ponto a ponto, compõem o traçado da linha da minha vida.

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