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Delito de Opinião

Na Sopa (6) - Júlia & Juliana

Maria Dulce Fernandes, 14.03.21

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A facilidade que as crianças têm em fazer associações de ideias remete-me sempre para a Sopa Juliana. O eu da minha infância nunca teve a mínima dúvida de que o nome de Sopa Juliana se devia ao facto de a mesma ser confeccionada pela Avó (bisavó)Júlia.  Lá vinha ela às 2as feiras, nos tempos em que a “praça" apenas encerrava ao Domingo, com a alcofa de palha cheia de embrulhos de papel de jornal em forma de cartucho de tremoços, com meio quilo dos mesmos e uma quarta de pevides para os meninos, couve e cenoura picadinhas naquela maquineta redonda de dar à manivela que a tia Adelaide tinha na banca da praça, uma quarta de feijão encarnado e batatas, cebolas, cenouras e abóbora a granel lá mais no fundo da alcofa.

Tirava o xaile castanho, guardava ciosamente a caixinha do rapé, arregaçava as mangas, botava  um avental cinzento com frente e verso sobre a saia comprida, atava o lenço preto na nuca e começava a preparar a base da sopa, com batata, cebola, cenoura, abóbora e alho e cozia  à parte o feijão encarnado previamente demolhado.

A Avó Júlia, a única verdadeira cozinheira da família, trabalhara na cozinha do Palácio das Necessidades antes da República e sabia cozinhar como ninguém,  apesar de os seus conhecimentos gastronómicos não poderem ser aplicados em casa com frequência,  porque o custo de vida e a família numerosa não lhe permitiam preparar na modesta cozinha com fogão a lenha, os acepipes que cozinhava para a realeza. Contava ela  com aquele meio sorriso de pessoa sofrida, que também tinham que ser inventivas e algo malabaristas com o orçamento na cozinha do palácio,  porque a Rainha D. Amélia era muito rígida com as contas,  bastante forreta e muito exigente.

“ D. Amélia de Orleães,  que em Portugal foi Rainha, tinha coração de fera e julgava ser santinha", cantarolava a Avó Júlia, a título de pregão explicativo das coisas que tinham sido.

Sopa havia sempre e em boa quantidade, por isso a “entrada" era invariavelmente sopa , que tinha que ser consumida a todas as refeições e até acabar o panelão.

Por estranho que possa parecer, a criançada comia o que comiam os adultos e se a sopa tinha couves e feijões,  pois que era o que havia para comer e com fita ou sem fita a sopa era uma instituição.

Eu não gostava de sopas com “couves”. Qualquer legume que obrigasse a um processo de mastigação mais demorado, era um tormento. De todas as sopas de“ couves", o meu ódio de eleição recaía na sopa de feijão verde. Ainda agora a minha relação com as judias verdes é bastante tensa. Já a couve branca curiosamente comia bem, enrolada tipo esparguete e feijãozinho, sempre.

Depois de cozinhados os legumes eram passados pelo enorme passe-vite de folha, acrescentados de água, azeite , sal e da Juliana de couve e cenoura e por último do feijão encarnado já cozido.

Se era boa a sopa, nem vale a pena perguntar. Por muito que  tente reproduzir os sabores de antigamente, nunca consegui alcançar o sabor que emanava da paixão pela cozinha e pela família que a Avó Júlia acrescentava aos condimentos de  todas  as suas sopas e de  todos os seus cozinhados.

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