Musiquetas
Há tempos lembrei-me de coligir os textos que já escrevi desde 2011 – mais de mil. Um exercício de narcisismo oco: a maior parte estão datados e quase todos, se os republicasse, teria vontade de alterar – não que ganhassem necessariamente com o exercício, quem torto nasce etc.
Isto a benefício de um imaginário sobrinho-tetraneto, que decerto pensaria, se lesse, que bem estranhos eram os tempos do seu avoengo.
Dei-me conta de que jamais escrevi uma linha sobre música. Estranho: ouço-a há décadas, quase todos os dias, às vezes por horas, e tenho gostos perfeitamente delimitados.
Esta idiossincrasia é parte do problema: não partilho os gostos musicais de quase ninguém que conheça e, salvo um ou outro intérprete, por causa de uma ou outra canção, ou alguma qualidade distintiva, envolvo quase toda a música popular, nacional e estrangeira, contemporânea e pregressa, na mesma indiferença no melhor dos casos e, o mais das vezes, aversão.
Tanta que não vou a estabelecimentos com música ambiente; e, se os não puder evitar, acabo por pedir que ponham a música mais baixo, com a secreta esperança de que a desliguem. Coisa que costuma surpreender os proprietários ou empregados porque têm a ideia peregrina de que o barulho alegra o ambiente, e que o silêncio não se aguenta.
Sucede que a maioria das pessoas que gostam muito de música, se perguntadas sobre de que música gostam, dirão que a de qualidade; e inquiridas sobre o que é música de qualidade esclarecerão com exemplos da música que apreciam. Essa é a que tem qualidade – a outra não.
A conversa, havendo gostos diferentes, está portanto minada. E se, num momento de loucura, me passasse pela cabeça afirmar que Julio Iglesias é (ou era, parece que está a cair da tripeça) um cantor xaroposo e peganhento, um fã do charmoso que calhasse de ler (no caso de os fãs saberem ler, uma improbabilidade, e de me lerem a mim, outra maior) ficaria justamente indignado.
Indignação mais do que justa. Porque há gente que se comove, a ouvir o Julio, até às lágrimas. E que a uma pessoa honesta se venha dizer que o que a comove até às lágrimas, ou o que a faz vibrar, ou sonhar, é um produto inferior destinado a impressionar sensibilidades grosseiras, é o mesmo que dizer que a pessoa, ela mesma, é no melhor dos casos ignorante e básica. O que, mesmo que fosse verdade (e pode não ser – no exemplo que escolhi não é impossível que a senhora que delirou com os gorjeios do azeiteiro tenha um excelente tino literário, ou sólida formação científica, ou discernimento em artes plásticas, ou, ou, ou) cairia muito mal, sem nenhum benefício para os destinatários e algum risco para o insolente.
Depois, há a juventude e a idade madura. E aquela música de que se gostou muito na adolescência tende a ficar associada ao maravilhamento da idade, razão pela qual, para o resto da vida, os ídolos musicais daquele tempo dourado ficam embrulhados no véu da saudade.
De resto, se se entendesse elevar o nível do gosto musical, o caminho a seguir seria o de ensinar música na escola, isto é, a lê-la e tocar pelo menos um instrumento com razoável grau de domínio, e não dar aulas de gosto com base nas nossas preferências. Ensino que poderia defender sem ofender ninguém se o achasse – não é o caso – de capital importância.
Portanto eu, de música, nunca disse pevas e fiz muito bem: não aconselho, não sugiro e não preciso de companhia. No YouTube e no Spotify está o que quero, e agradeço que não me recomendem nada, salvo aquela última aplicação, que me aconselha coisas, acertando muitas vezes ꟷ algoritmo reguila.
Hoje porém vou abrir uma excepção para confessar uma particular incredulidade pelo sucesso de Sérgio Godinho, que fez 75 anos e, para comemorar, enche salas e pavilhões com gente que lhe vai ouvir os trinados.
Trinados é como quem diz. Que na realidade o homem até a cantar no quarto de banho só poderia legitimamente agradar a um cão paciente e meio surdo.
O que vai aquela gente lá fazer? Não pode ser para o ver, que é tão atraente como um pau de sabão; nem para o acompanhar nas melodias, que se calhar de ficarem no ouvido são ainda mais incomodativas do que o excesso de cera; nem por causa da poesia, tão inspirada como a bula de um medicamento. E da música tocada é melhor nem falar – aqueles músicos, se andaram no Conservatório, e este esteve à altura da sua missão, devem ter os nós dos dedos encaroçados de tanta reguada.
De modo que, se a lógica não for uma batata, a assistência vai ali como se vai ao cemitério no Dia de Todos os Santos: visitar os falecidos, no caso o PREC.
Respeito os mortos, e gosto de cemitérios. Mas sem barulho. Que agradeço não façam na caixa de comentários porque, prometo, nos próximos dez anos, se ainda por cá andar, direi sobre música o que disse nos dez anteriores.