Multiplicação dos pães
Nos seus quase nove séculos de vida Portugal atravessou fomes, pestes e guerras, incluindo civis, e portanto a afirmação que costumo fazer de que a dívida portuguesa actual é a maior da sua História é provavelmente falsa. Por exemplo, sei lá qual o tamanho do tombo que a guerra civil de 1832-34 provocou, e qual foi exactamente o preço do apoio inglês a um dos lados. Quem sabe dessas coisas é um economista como Nuno Palma, e mesmo esse lança mão de métodos indirectos – o Instituto Nacional de Estatística só foi fundado em 1935, em vez de, como teria sido desejável, no séc. XII.
Guerra já não temos desde 1974 e essa, que decorreu a partir de 1961, coincidiu com o maior período de crescimento económico da nossa história (mais uma vez, se formos procurar nos escaninhos da memória histórica talvez se encontre outra época dourada, os historiadores económicos que desembrulhem essa meada), e, já agora, também com o das antigas colónias.
A desvalorização destes factos, tal como o do saneamento das contas públicas que o Estado Novo realizou, é um sub-produto da guerra ideológica: o regime salazarista, e a sua versão edulcorada, isto é, o marcelismo, não podiam ter produzido crescimento porque reconhecê-lo é o mesmo que coonestar o regime.
Não é, claro, e haveria alguma coisa a ganhar em estudar o passado sem as lentes dos partis pris ideológicos. Mas nem quem o interpreta se subtrai a preconceitos: a explicação para a vertiginosa convergência com a Europa na década de 60 costuma ser a adesão à AECL em 1960 e a base relativamente baixa de que se partia. Explicações significando pouco porque a ainda maior abertura ao comércio externo em 1986 não produziu efeito tão relevante (sem guerra e com apoios que a AECL não contemplava) nem a base de que se parte quer dizer muito: Portugal está há quase duzentos anos, pelo menos, relativamente atrasado no continente a que pertence, e nem por isso deixou de ter largos períodos de estagnação.
Não vou, num artigo para um blogue, resolver o problema da dívida que nos atenaza. Aliás, se resolvesse escrever um livro sobre a matéria, é provável que ficasse com lesões no couro cabeludo, de tanto o coçar; e ainda menos o do atraso português, que há vinte anos se acentua.
Mas, se é difícil enunciar a longa lista do que seria necessário fazer, é muito mais fácil tropeçar no que não se deve porque temos todos os dias exemplos diante do nariz. E destes a importação acrítica de soluções de países em circunstâncias diferentes é quase sempre uma burrice. Eça disse algures (cito de cor) que Portugal era um país traduzido do francês em calão; e agora continua a ser, mas do inglês macarrónico das faculdades do mundo anglo-saxónico, onde actualmente a seita dos economistas vai buscar a sua formação, para o efeito de preopinar receitas para o desenvolvimento – já andamos nisto há quarenta anos.
Desse mundo vêm as modas do pensamento mágico. E destas a última é a da semana dos quatro dias. Há países e empresas que já estão a estudar, e a aplicar, versões diferentes deste milagre. Nós, se tivéssemos juízo, deveríamos olhar para semelhante movimento por aquilo que é: empresas e países que, tendo pouco a invejar à concorrência, transferem para empregados e cidadãos os benefícios do desenvolvimento e o maná dos recursos. Imaginar que, trabalhando menos, se produz mais sem mexer nos outros factores que têm a ver com produtividade, é o milagre da multiplicação dos pães, a menos que o resultado do trabalho seja o mesmo, apenas o seu ritmo aumente.
Não é que, longe disso, a quantidade de horas de trabalho seja a variável mais importante no desempenho das empresas: qualquer empresário de vão de escada sabe que se duplicar a produção porque investiu numa nova máquina, mesmo que requerendo pessoal com formação, portanto mais bem pago, pode ter feito um excelente negócio; como o pode ser a contratação de quem se ocupe do marketing, ou a criação de canais próprios de distribuição, ou a adopção, se for bem sucedida, de uma estratégia de diferenciação do produto, ou, ou, ou. Tudo isto e o mais que qualquer licenciado em gestão pode papaguear, em geral acrescentando queixa das deficiências de formação dos ridículos empresários que o não contratam, razão pela qual o país está muito atrasado e pérépépé. Os motivos por que quem não sabe faz, e quem sabe opina em vez de fazer, ficam em geral no segredo dos deuses.
“Aquilo que é robusto na literatura é que em termos macro existe uma correlação negativa entre o PIB por hora trabalhada e o número de horas trabalhadas. Países com maior produtividade trabalham menos horas em média (Dinamarca e Noruega) e países com menos produtividade trabalham mais (Grécia e Portugal). Correlação não quer dizer causalidade”.
Não, não quer, se bem que neste caso a causalidade exista: os países que são mais produtivos não precisam de trabalhar tantas horas porque… são mais produtivos, isto é, têm mais capital, do propriamente dito e do humano, além de uma história mais ou menos recente de progresso que lhes permitiu estarem onde estão – candeia que vai à frente ilumina duas vezes. Candeia em termos micro, não sei se me entendem, em termos macro deveria talvez dizer uma rede de holofotes, que arranho umas coisas do dialecto economês.
Porquê então este disparate? A ideia de que depois da Covid nada ficará como antes é aliciante: o cidadão já se habituou a achar que o Estado pode tudo, combater a epidemia e paralisar a economia, subsidiando-a de modo a tornar o sofrimento invisível, e que o endividamento daí resultante é uma abstracção – eles resolverão o problema. Quem pode o mais pode o menos, haveremos de ter o mesmo PIB por cabeça da Alemanha, um design do nível do italiano e as mulheres bem vestidas como as francesas até mesmo no Casal Ventoso. E para isso não é preciso esforço, do que precisamos é de governos de esquerda, daquela esquerda que se acolhe ao que a define – bandeiras, como dizia Kundera (cito de memória, mais uma vez). De modo que podemos contar com engenheiros do progresso, empresas que querem aliciar os melhores quadros, sindicatos, a malta do PCP que quer pôr fim ao capitalismo e a do BE que o quer melhorar até ao ponto de ficar irreconhecível, bem como adeptos da descarbonização, não dos refrigerantes em garrafa, como se esperaria, mas da economia, uma iniciativa ecológica que tem a grande vantagem de não se saber bem o que seja além de subsidiar parasitas para produzir o que sem ajudas não veria a luz do dia.
Isso e idiotas úteis, dos quais entre nós há uma generosa abundância.