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Delito de Opinião

Muita areia para a nossa camioneta

Luís Naves, 07.03.17

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Ontem à noite, ouvi o comentador Miguel Sousa Tavares fazer um duro ataque à Hungria de Viktor Orbán. O jornalista falava sobre a discussão do futuro da Europa e, sem motivo óbvio, começou a desancar nos húngaros, misturando alhos com bugalhos. Não vou citar entre aspas, mas a ideia era mais ou menos esta: a Hungria não cumpre os valores europeus, logo, coloca-se a questão: o que é que estamos a fazer numa Europa que mantém gente desta?

Em relação à discussão sobre o futuro da Europa, ainda não ouvi um único membro das elites intelectuais ou políticas a dizer com clareza o que deve Portugal defender. Miguel Sousa Tavares também parece não ter uma única ideia sobre isso, limitando-se a repetir a beatice nunca definida dos “valores europeus”. Afinal, o que são estes valores europeus? O que distingue a Europa do resto? Bem, a Europa não seria o que é se não tivesse cristianismo, capitalismo, a ideia do primado da lei, a diversidade, o racionalismo, separação de poderes e resistência militante à unificação política ou às tiranias. Ora, os países de Visegrado, que estão a ser tão vilipendiados, apresentam um plano baseado em alguns destes valores, nomeadamente a resistência ao federalismo, devolução de poderes aos parlamentos nacionais e criação de uma união de nações que permita manter o mercado único. Isso corresponde mais ou menos ao cenário dois do Livro Branco, que Bruxelas, obedecendo a Berlim, recusa à partida.

Podia tentar explicar aqui que a Alemanha quer mais federalismo, que a França (dos partidos tradicionais) parece defender uma tese de Europa a várias velocidades, que Portugal não tem opinião que se veja, que cresce a fractura entre pequenos e grandes, com a Polónia excluída da reunião de Versalhes e a juntar-se aos primeiros, até a liderar a rebelião. A Polónia, aliás, tem um governo conservador, católico, e o cristianismo é um dos valores europeus que pretende incluir na discussão, algo que franceses e alemães recusam. A equação sobre o futuro da Europa tem muitas incógnitas que complicam os cálculos nacionais: o papel da Rússia e a evolução da mini-Guerra Fria, o futuro da NATO e o aumento dos orçamentos militares, a velocidade a que as economias estão a sair da crise, a eventual não-sobrevivência da zona euro, os vários cenários de Brexit, a forma como os movimentos populistas podem moldar as decisões.

A reacção fácil a estas complicações é dizer que não queremos saber nada disto e que os eleitores estão errados em todo o lado. Falar destas coisas em Portugal começa a ser inútil, pois no comentário oficial dos meios de comunicação vai triunfando o velho preceito português de que a Europa é demasiado complicada para nós. O melhor é seguirmos o caminho das ilusões ultramontanas, arranjando uma desculpa qualquer, dizendo mal dos vizinhos, a bater no peito e a gritar que somos os maiores e, claro, antigos onde os outros são novos, que não nos aborreçam com assuntos.

5 comentários

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    Luís Naves 07.03.2017

    O actual governo português não defende a democracia liberal, julgo, e no entanto é democrático, sem pertencer ao sector do liberalismo… Está a falar de dois governos conservadores, que de facto não são liberais, mas o governo grego também não é, os social-democratas suecos também não são, o próprio presidente francês não é propriamente um liberal desde pequenino… Quanto ao acolhimento de pessoas perseguidas e refugiadas, a Hungria recebe muito mais do que nós, vários milhares a mais, portanto não percebo a objecção...
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    Luís Lavoura 08.03.2017

    A democracia liberal é um valor de (quase) todos os países da União Europeia, mesmo daqueles que não têm governos liberais. A palavra "liberal" na expressão "democracia liberal" significa tão-somente que a governação respeita liberdades e direitos humanos e políticos mínimos, os quais não estão sujeitos ao escrutínio da maioria democrática. Por exemplo, a não-discriminação em termos da raça é um valor liberal: mesmo que a maioria da população seja racista, o Estado não está autorizado a sê-lo.
    Valores liberais ne democracia liberal são, por exemplo, a liberdade de expressão, associação e manifestação, a não-discriminação em termos de sexo ou religião, a separação entre o Estado e a religião, etc. São valores que todos os governos na Europa são supostos partilhar, mesmo aqueles que não são liberais em termos políticos.
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    Luís Naves 08.03.2017

    Tendo em conta esta sua definição, não sei o que contesta a húngaros e polacos. O Estado não é racista em nenhum dos dois casos, não há discriminação em função de sexo ou religião, existe liberdade de expressão, associação e manifestação. São, afinal, democracias de tipo liberal. Enfim, quando somos forçados a definir as palavras e a sair dos lugares-comuns, a discussão torna-se um bocadinho mais complicada...
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    Einstürzende Neubauten 08.03.2017

    Liberdade de expressão?

    https://www.youtube.com/watch?v=EAPxNQZ1Rag
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