Moçambique: a maldição dos recursos humanos
jpt, 03.01.25
(Estrada Dondo-Inhaminga, Agosto 1999)
(Recebi um amável convite para publicar um texto sobre Moçambique na coluna "Oficina da Liberdade" no jornal "Observador". Como não é de acesso livre deixo-o aqui, em versão ligeiramente retocada. A fotografia que escolho para encimar o postal tem um sentido e um sentimento. O sentido é este: continuo a acreditar que para os portugueses perceberem aquele país é preciso que alguém ponha as botas no matope. O sentimento é este: tenho saudades de pôr as botas no matope).
1. Moçambique está em agonia desde as eleições legislativas, presidenciais e provinciais de 9 de Outubro. Este processo não é inesperado, dada a evidente gangrena do regime. Em Portugal acolhido pela usual distracção, na qual coabita o desinteresse pelas “coisas de África” - vistas como “imutáveis” - com o seguidismo aos regimes vigentes, por via de um dito “interesse estratégico” nacional. Mas a continuada repressão – que causou já mais de 250 mortos entre oposicionistas - trouxe uma recente azáfama na imprensa.
Assim, escapo ao actual imediato, recuando em busca de uma visão mais abrangente. Afastada da ideia demasiado “poética” que por cá se tem do país, tão visto como “a Pérola do Índico” - o velho cognome de Lourenço Marques/Maputo que se alastrou ao território nacional –, maculada apenas pelas cíclicas calamidades naturais. Imagem advinda das plácidas memórias colonas, imunes que estiveram – ao invés dos seus congéneres no restante ultramar continental – às agruras das guerras coloniais, pois lá circunscritas em áreas recônditas. E também ao sucesso actual de uma literatura “leve” moçambicana, a qual anima estereótipos sobre aquelas populações, suas mundividências e ambições.
2. Figura maior das letras moçambicanas, o romancista João Paulo Borges Coelho vem demonstrando – mas fazendo-o alheado de qualquer militância ideológica subalternizadora da tarefa literária - as complexidades, costuras e cesuras constitutivas do seu país. Mas também as continuidades, nessas também com o passado colonial.
Identifico dois traços, remanescentes do passado colonial e estruturantes do presente. No seu início, o novo regime recobriu de noções marxistas o velho mote “O Fardo do Homem Branco”, qual “fardo do homem revolucionário” em afã transformador, “civilizador”, no que de tutela opressiva tinha sobre a população. Ideário herdado pelo subsequente regime “liberal”, dada a manutenção de quadros e modos. Os quais se indiscutiram através de uma “amnésia organizada”, esquecendo o passado comunista como se assim também apagando o legado das tácticas dirigistas e tiques ditatoriais.
Outra é a desconfiança face a um rápido crescimento económico, que possa originar desenvolvimentos que ameacem decrescer o controlo estatal sobre a população. Um pouco como a história – talvez apócrifa, mas tão repetida… – do desagrado de Salazar face ao anúncio da descoberta de petróleo em Angola.
Exemplifico esta perenidade, tão relevante é neste processo. António Ferro (1895-1956) e Fernanda de Castro (1900-1994) foram casal influente das mundividências letradas no Estado Novo. Em 1966 Castro publicou “África Raiz”, um generoso poema, eivado de típico primitivismo benfazejo, no qual África surge como dotada da “Presença subterrânea / de lavas e de chamas, / de vulcões em potência, / ressonância, rumores / dos rios interiores, / promessas de esmeraldas, de rubis, / de metais raros…” (11).
Há décadas, chegado ao país, ali encontrei vigente no país esta ideia de uma “África” natural, “vulcânica” pois prenhe de um ror de riquezas subterrâneas, até desordenadoras de bons rumos sociais. Não júbilo mas sim lamentos, angustiados com a “maldição” dos “recursos naturais”, temendo pressões internacionais e as derivas apropriadoras das elites nacionais. Assim mostrando o temor nas suas instituições, na “maldição” dos “recursos humanos” próprios. A história deu razão a esses receios, dir-se-á. Mas também mostrou a descrença local nessa “África”, afinal nada telúrica ou primordial, mas sim a população e seus anseios.
3. Os alheados surpreenderam-se em 2024 com o viço de Venâncio Mondlane e com a rispidez da reacção estatal. Mas a violência política no país é uma constante. Desde o seu início a então Frelimo compôs-se de várias tendências, sob purgas internas, quais tramas shakespearianas. Continuadas após 1975 com a morte de vários dos seus antigos dirigentes, e de outros oposicionistas. As suas políticas de socialização rural foram brutais. E até à década seguinte dinamizou letais campos de concentração.
E entre 1976-92 grassou a guerra civil, que a Renamo alastrou à maioria do país. Se depois alardeou o estatuto de “pai da democracia”, a sua metodologia guerreira assentara no terror, convocando a desabrida reacção estatal. “Quando dois elefantes lutam quem sofre é o capim”, é o apropriado provérbio: a guerra causou, directa e indirectamente, um milhão de mortos e cinco milhões de refugiados, na sua maioria oriundos de meios rurais. Um processo que deixou uma cesura indelével entre as elites partidárias, pouco ou nada favorável à “coabitação” democrática.
4. Por exausto que o país estivesse, a paz não adveio só por dinâmicas internas, mas derivou do fim da Guerra Fria e do regime sul-africano. Ainda assim a pacificação social teve sucesso. Muito devido à presidência de Joaquim Chissano (1986-2005), um virtuoso estadista. Soube colher inúmeros apoios internacionais. E regulou a transição para uma economia liberal. Alguns apontam-lhe o início do regime oligárquico, em conúbio com as transacções estrangeiras. Mas se como colónia Moçambique estava desprovido de classe empresarial e de capital próprio, após o período comunista e a guerra, inexistiam indústria, agro-indústria e verdadeira rede comercial. Assim, montar uma economia de mercado sob um “manual de bons costumes” seria uma utopia estéril. De facto, no final de XX houve democratização de instituições e desenvolvimento. Coexistindo, é certo, com laivos de criminalização estatal – como exemplificou o assassinato em 1997 de Lima Félix, administrador residente do BCP.
Entretanto o Estado fora surpreendido em 1994 com a expressão eleitoral, quantitativa e territorial, do Renamo, antevisto que era como mero movimento “tribalista” sofrendo o ónus do terror. Desde então o sistema eleitoral foi sendo moldado para evitar os ditames do “uma pessoa, um voto” – como agora reconhecem veteranos do Frelimo como Abdul Carimo Issá, Narciso de Matos, Teodato Hunguana ou Teodoro Waty. E em 1999 o Frelimo foi abalado com a derrota nas presidenciais – e provável nas legislativas -, obrigando a um manuseio in extremis da contagem na província de Nampula. Já antes, nas primeiras autárquicas de 1998, o Renamo se recusara a participar, contestando o processo de recenseamento.
5. A presidência de Armando Guebuza (2005-15) trouxe alterações. Alardeou um nacionalismo crispado face ao “ocidente”, qual reclamação de soberania exigente de dotações orçamentais directas na Ajuda Pública do Desenvolvimento e refutando o prévio molde de “condicionalidade política”, que orientara a prática “ocidental”. E ligado ao crescimento da presença da China e, também, do Brasil, países desprovidos de intenções de dinamização institucional. O símbolo dessa inflexão será a humilhação do governo português na cerimónia internacional de entrega de Cahora-Bassa (2007), situação impensável sob a presidência anterior. Todo um viés que traduzia uma menor propensão para a democraticidade interna.
Mas se foi sendo apertado o controlo do sistema eleitoral, os contextos dos processos electivos mudaram. Pois Guebuza reavivara o Frelimo, nisso utilizando reformas administrativas, cooptando sectores das “autoridades tradicionais” – e dos sacerdócios -, e a descentralização de recursos, promovendo algumas elites distritais nisso potenciando o clientelismo. Para além disso, os insucessos eleitorais do Renamo terão desmobilizado seus apoiantes ocasionais. E mostrava-se incapaz, desinteressado até, de alianças com partidos ou sectores da intelectualidade urbana, típico traço de movimentos subordinados a elites militarizadas. Na fiada de autárquicas o partido obtinha algumas vitórias mas em termos nacionais o Frelimo impunha-se. É nesse eixo que em 2009 se estabeleceu o MDM, então liderado por Daviz Simango, que se veio a circunscrever à Beira.
Nesse período firmou-se o que Lucas Bussotti intitula “democracia negocial”: as eleições realizam-se, são sufragadas no exterior, os resultados são concertados entre as lideranças partidárias e sucede-se algum tipo de redistribuição de recursos. É nesse âmbito que se poderá compreender a sublevação da Renamo após 2013, porventura devida à ambição de um maior quinhão no gigantesco desvio de fundos, ditos como destinados à protecção militar das explorações no Cabo Delgado, um caso que veio a ser conhecido como “dívidas ocultas” – e que, inclusive, conduziu à prisão (nos Estados Unidos, depois de longo cativeiro na África do Sul) do antigo ministro Manuel Chang. Mas que entretanto causou tão implacável repressão que obrigou à reabertura de campos de refugiados no Malawi. Para acolher os rurais, o tal “capim”…
6. A presidência de Filipe Nyusi (2015-2025) foi um consabido descalabro – por demais exemplificado na gestão da guerra no Cabo Delgado, onde foi gritante a inacção estatal. Para além de si próprio, Nyusi foi enleado na teia das facções conflituantes na elite do partido – também este exausto, inclusive comercializando as suas lideranças intermédias. Tornou-se uma constante a apropriação dos fundos internacionais, a rapina dos “recursos naturais” – entre os quais o vasto litoral, entreposto da economia criminal índica -, a própria “indústria de raptos”, forma de extorsão aos comerciantes de origem asiática – actividade cujos lucros apenas são suplantados pelos obtidos pela indústria extractiva e o narcotráfico.
Tal como a morte de Daviz Simango (2021) enfraqueceu o MDM, a de Afonso Dhlakama (2018) trouxe a mansidão da oposição do Renamo, cooptado ao regime. E a prescrição da tal “democracia negocial” – demonstrada no reclame de uma implausível vitória do Frelimo nas autárquicas de 2023. A repressão sobre imprensa e academia – inclusive com exílios, contínuos ou periódicos – foi-se acentuando. E generalizou-se o assassinato político, entre os quais o do jurista Gilles Cistac (2015) – por ter defendido a constitucionalidade de eleições provinciais (!) -, do autarca de Nampula Mahamudo Amurane (2017) – denotando a criminalização daquela região -, ou do activista eleitoral Anastácio Matavel (2019) – caso simbólico da perda de controlo da província de Gaza, antigo feudo do Frelimo.
7. Em termos institucionais Mondlane está muito só, para além do apoio popular que obteve. O partido Podemos, sob o qual concorreu, não é propriamente uma “dissidência” do Frelimo, mas sim uma sua emanação – seria trampolim político de Samora Machel Jr. Exilado, não absorve ou dialoga com o crescente descontentamento da classe média – inclusive dentro do Frelimo. E não controla os contestatários, uma mole inorgânica, e vencível pelo cansaço.
Alguns intelectuais clientes do regime acusam-no de ser de “direita” (como se os pólos “direita” e “esquerda” tenham algum sentido no país). Nas redes sociais disseminam imagens suas com André Ventura, obscurecendo que esse encontro se integrou numa ronda de contactos que Mondlane fez com políticos portugueses, e europeus. Reduzem-no a “pastor” “evangélico” – a querer fazer esquecer o seu (deles) apreço por figuras de clérigos políticos como Jesse Jackson, mesmo Martin Luther King. Ou o mais vizinho Lazarus Chakwera, actual presidente do Malawi e próximo do regime de Maputo.
Também apagam que no país os clérigos são consagrados agentes políticos: a Comissão Nacional de Eleições é encabeçada, rotativamente, por representantes das diferentes confissões. Antes um partido islâmico (PIMO) surgiu no regime democrático, autarcas são eleitos por candidaturas religiosas. E apagam que a IURD se associou ao Frelimo, para além da evidente utilização da teologia do enriquecimento, cara aos pentecostais, pelo presidente Guebuza. Mais ainda, desdenham que, desde há décadas, grassam em vários países africanos movimentos ancorados nas igrejas evangélicas, uma “revolução conservadora” (como lhe chamou Bayart), muito ligada à constatação de falhanços estatais.
E, mais estrategicamente ainda, esquecem que alguns dos seus mais próximos – como o assassinado Elvino Dias – se reclama(va)m da “esquerda” marxista. No fundo, compondo um caldeirão ideológico de descontentes com a deriva infecunda do velho Frelimo. Autocrático.
8. Que fazer? É óbvio que a situação actual é insustentável. Nem é crível que os eleitos do Podemos renegarão a sua entrada na Assembleia da República. Nem Mondlane poderá continuar a discursar, de longe e com eficácia, por muito mais tempo. Mas também ao Estado não bastará reprimir. Nem assumir que o seu actual rumo é benéfico, desenvolvimentista. Ou, pelo menos, apaziguador. Sem maximalismos urge negociar. Ceder, mutuamente. Sob pressão internacional – do tal malvado “ocidente”, pois para o propalado “sul-sul” só conta o “business as usual”. E, decerto, dos países vizinhos, preocupados com a instabilidade e a ruptura dos fornecimentos. Contando com as congregações religiosas internacionais, confederações evangélicas e igrejas cristãs em geral.
Um acordo desiludirá algum povo. Sim. Mas contentará a maioria. E depois que se façam reformas, melhorias. Se houver patriotismo suficiente. E se se encontrarem energias no Frelimo que possibilitem alguma sua regeneração. E nessa, entenda-se, disponibilidade para ser… oposição.