Missão Ucrânia 2022 - III
No dia seguinte regressamos a Siret para a última leva de hóspedes. Depois disso iniciamos o regresso e só apanhamos mais três pessoas que já se encontravam na Roménia.
Sobre a forma como os países europeus estão a reagir perante a crise humanitária em curso, importa referir que na Ucrânia existe um passaporte para uso interno, que equivale ao nosso cartão de cidadão, totalmente em cirílico, e também um passaporte internacional para quem sai do país, este em cirílico e em alfabeto latino. Os menores de 14 anos têm apenas uma certidão de nascimento sem foto e exclusivamente em cirílico. Antes da guerra em curso, apenas o passaporte internacional permitia a saída do país. Neste momento, qualquer destes documentos são suficientes para atravessar as fronteiras terrestres com os países vizinhos. Quando entramos na Hungria, e no espaço Schengen, fomos obrigados a aguardar pelo demorado processo em que todos os nossos hóspedes foram fotografados e foram registadas as respectivas impressões digitais. Mesmo as autoridades húngaras que se notabilizaram pelos entraves colocados aos refugiados do médio oriente, mudaram radicalmente a sua atitude.
Apesar do tradutor do nosso grupo não ter tido um instante de folga, não conseguíamos comunicar com todos os nossos hóspedes da mesma forma. Com cada um dos que arranjamos forma de conversar, soubemos histórias incríveis. Tentarei postar aqui dois casos específicos que me impressionaram.
Ao mesmo tempo que a nossa operação decorria na Roménia, íamos conversando com o resto do grupo na Polónia. Ali a dimensão das coisas eram bem maior, na mesma escala da pressão a que as fronteiras polacas estão a ser sujeitas.
Desde o início que tivemos conhecimento de um grupo de pessoas em Dnipro que estava dentro de um bunker e que tentava sair da Ucrânia. As conversas com o padre que liderava este grupo decorriam através de uma cadeia de contactos e o que se ia sabendo não permitia um planeamento rigoroso. Esse grupo de perto de 100 pessoas era composto por bastantes crianças, alguns órfãos e também alguns deficientes. A possibilidade de saírem dali de autocarro exigia mais do que um veículo, assim como a que a viagem fosse nocturna para evitar que pudessem ser um alvo para as tropas russas. Na sua primeira tentativa soubemos que um dos autocarros avariou e tiveram de voltar para trás. Depois disso o plano passou a incluir uma viagem de comboio. Assumimos para com o referido padre, que chegados à Polónia lhe asseguraríamos transporte para Portugal. Os dias foram passando, e enquanto aguardávamos por notícias deles a nossa capacidade de transporte ia ficando esgotada. Foi quase na última hora que finalmente soubemos que estavam a chegar à fronteira de Chelm. Quem acompanhou a chegada de todos eles, num comboio apinhado de gente em pé, com os rostos quase ocultos pelas vidros embaciados da carruagem, diz ter-se lembrado das imagens a preto e branco que associamos ao pior da Segunda Guerra Mundial. Mas desta vez havia alguém à espera deles.
Por já não termos lugares vagos para estas 88 pessoas, a solução passou por contratar dois autocarros polacos e os valores necessários para esse transporte ultrapassavam os 20.000 EUR. Pelo sistema que usamos para poder comunicar dentro de todo o grupo, íamos acompanhando todos estes passos. Foi lançado um apelo geral para que mobilizássemos todos os nosso contactos. Conseguir ajudar este grupo, o mais frágil de todos quantos lidamos, seria a melhor forma de terminar a missão. A divulgação que foi sendo feita de toda a operação através das redes sociais, foi neste momento um factor crítico e não pudemos deixar de ficar emocionados com a rapidez com que esse valor foi coberto por diversos donativos. Em menos de 20 minutos foi possível confirmar a contratação dos autocarros. Para quem dúvidas disso tivesse, ali entendeu que o dinheiro é de facto apenas um meio e não um fim.
Foto tirada na fronteira de Chelm
O regresso até casa exigiu mais umas dezenas de horas de condução, rodando condutores, consumindo mais uns litros de café e de bebidas energéticas. Dadas as necessidades do nossos hóspedes mais novos, acabamos por fazer mais paragens.
Muitos foram os sentimentos que nos assaltaram ao longo das longas horas do regresso. Connosco trazíamos pessoas que fugiam da guerra, e no sentido contrário vimos seguir baterias de artilharia, veículos blindados, de engenharia militar e muito mais material transportado em veículos camuflados. Vivemos hoje dias diferentes dos que até agora tínhamos conhecido. O empenho colocado em ajudar os desconhecidos que connosco viajavam, misturou-se com a apreensão de como tudo o que estávamos a fazer será visto por nós próprios se, por nossa infelicidade, a guerra ultrapassar as fronteiras ucranianas.
No regresso tentámos estabelecer uma rede de diversos locais onde pudéssemos descansar. Todos puxamos pela lista de possíveis contactos no sul da Alemanha, centro de França e norte de Espanha. Algumas dezenas de chamadas desencadearam centenas de outras e em pouco tempo havia já uma lista considerável de possibilidades. A nossa colega delituosa Cristina Torrão foi também metida ao barulho e sei bem do empenho que colocou no favor que lhe pedi. Muito Obrigado Cristina.
Acabamos por pernoitar em Ulm, distribuídos por casas de emigrantes portugueses e também num hotel da cidade. Tudo nos foi oferecido sem que nos deixassem despender de um cêntimo. As refeições foram fornecidas por um restaurante português, e enquanto saboreávamos um excelente arroz de pato, sentimos mesmo que estávamos em família.
Uma vez que nem todos os carros iniciaram o regresso ao mesmo tempo, a chegada a casa foi acontecendo ao longo de dois dias. Os últimos a chegar tinham um numeroso grupo à sua espera e uma refeição quente. Quase não houve energia para discursos nem para muitas manifestações do alívio e da satisfação que sentíamos. Todos estavam apenas a começar a processar o que tinha acontecido nos últimos dias, em que uma semana equivaleu a bem mais que um mês de vida. O sentimento de missão cumprida (e bem comprida) era geral. Todos sabíamos que até percorrer o último quilómetro, tudo estava ainda por fazer. Bastava que um carro fosse à berma e a missão podia ser um fracasso. Por isso, na catarse da chegada correram mais lágrimas e trocaram-se mais abraços, do que palavras foram ditas.
Nos escritos da antiguidade, salvar uma vida é como salvar a humanidade. Sem saber se o que tínhamos vivido se podia encaixar nesse pensamento, não duvido que sentimos que, pelo menos, nos estávamos a salvar a nós próprios. Nas redes sociais, os fiscais da moral dos outros, sentados no sofá e de dedo em riste, classificam missões como esta como a prova do racismo dos portugueses, uma vez que nada de comparável foi feito para com os sírios. A nossa sentença é óbvia e inabalável. Mas eu gosto é das pessoas que apenas às vezes fazem coisas boas, e por isso sinto que foi um privilégio conhecer tanta dessa gente nesta viagem.
Dentro da caravana seguia também o Henrique Ferreira, jornalista do Porto Canal, que foi reportando a evolução da Missão.
Clicar no foto para ver a entrevista.
Como já se ia suspeitando, os testes rápidos confirmaram umas quantas infecções de covid dentro da caravana. Se a moral ajudar a domesticar o bicho, então esse não será mais do que um detalhe na história da missão.
Há ainda um outro aspecto digno de registo. Os mais experientes nestas coisas já tinham lançado o alerta a todo o grupo. Quanto maior for a exigência física e emocional de missões como esta, maior a dificuldade que se tem em regressar às rotinas prévias, e maior será o impulso para as repetir. A uma escala diferente, os repórteres de guerra e as tropas especiais passam exactamente pelo mesmo processo. Independentemente do que se tenha conseguido fazer, nada está resolvido. O regresso ao palco das operações é sempre justificado pela dimensão humana e até histórica do que desenrola na linha da frente dos combates. Nós estivemos a uma distância significativa dos combates, mas tivemos percepção de alguma da dimensão humana que deles resultam e, como nunca até então, sentimos o travo dessa adrenalina que se pode tornar aditiva e contra a qual não há metadona que acuda. No grupo de mensagens criado para a Missão o assunto não parou. Logo que a covid o permita, temos de regressar. Ajudamos “apenas” 284 pessoas a fugir da guerra e os deslocados são aos milhões.
É difícil olhar friamente para todos estes números. Não fosse o facto de, por detrás deles estarem os nossos hóspedes, de nos recordarmos do seu nome, do seu rosto, das suas lágrimas, dos seus sorrisos e das suas histórias, e tudo se poderia reduzir facilmente a uma estatística distante. Mas assim, fico sem saber o que pensar ou dizer.