Metáfora do destino português
Os crónicos problemas de Portugal relacionam-se com a profunda impreparação e a manifesta venalidade das nossas elites. Este pensamento, que percorre grande parte da obra de Vasco Pulido Valente como historiador e ensaísta, ressurge num livro agora editado pelo autor de O Poder e o Povo, justamente intitulado O Fundo da Gaveta.
Um título com sentido duplo: não apenas alude ao facto de incluir dois ensaios, escritos desde 1989 e até hoje inéditos, mas funciona também como metáfora de um certo destino português.
São «dois fragmentos de uma hipotética História do Portugal moderno», concebida quando Pulido Valente era investigador do Instituto de Ciências Sociais (ICS). O projecto abrangia aspectos económicos, sociais, militares e diplomáticos, como o autor explica num breve prefácio. «Isto não caiu bem na sopa turva do esquerdismo metafísico e simplório, de que a universidade e as suas ramificações têm vivido», acrescenta.
Ao fim de três anos, o empreendimento abortou. Sobraram os ensaios aqui reunidos, inicialmente apresentados num seminário do ICS. Embora visem diferentes décadas do século XIX, têm em comum a peculiar resistência dos portugueses à mudança: entre nós foi sempre mais fácil fazer revoluções do que concretizar reformas.
Do absolutismo à "fusão"
"A Contra-Revolução (1823-1824)" aborda o turbulento ano decorrido entre a Vilafrancada, movimento restauracionista promovido pelo infante D. Miguel, e a Abrilada, nova tentativa de golpe de mão dos absolutistas - desta vez contra a "terceira via" ensaiada pelo Rei D. João VI para pôr fim à guerra civil larvar que já grassava no País e dilacerava a própria Família Real, com irreparáveis consequências na década seguinte. É um retrato sumário, mas expressivo, da debilidade das nossas instituições, postas à mercê de sucessivos estados de alma dos dirigentes, num momento de comoção colectiva provocada pela recentíssima perda do Brasil, que os integristas domésticos ainda procuravam reunir à coroa portuguesa.
"Ressurreição e Morte do Radicalismo" (1867-1870) debruça-se em estados gerais sobre os chamados governos de "fusão" naquela época iniciados - correspondentes àquilo que hoje chamaríamos "bloco central". Era uma amálgama de liberais, progressistas, conservadores e até antigos legitimistas convertidos ao desígnio comum de «pastorear a nação», com a bênção do palácio real e do voto censitário num país que permanecia em larguíssima medida analfabeto. Os gabinetes ministeriais sucediam-se num frenético jogo de cadeiras enquanto as finanças públicas entravam em derrocada.
Editoriais e motins
Produziam-se reformas contestadas em motins de rua e nos inflamados editoriais da imprensa: a reforma do mapa administrativo, a reforma da justiça, a reforma fiscal. Quase todas condenadas ao fracasso mal soltavam os primeiros vagidos. Desse período sobrou o monumental Código Civil (com a introdução do casamento laico) que viria a perdurar um século e a abolição total da pena de morte em território português - marcos civilizacionais submergidos na algazarra política da época, em que os apóstolos da "revolução socialista" alternavam com arautos da "integração ibérica" e a incipiente oposição republicana conspirava já pela abolição da Monarquia.
«Sempre me queixei nos jornais da falta de memória dos portugueses. Mas os portugueses não se podem lembrar de uma história que ninguém lhes contou», observa o autor no prefácio. Justificando estas suas acutilantes incursões num século ainda tão mal conhecido entre nós - e que ganhariam, em reedições da obra, se vissem adicionado um verdadeiro dicionário onomástico nas páginas finais, além de notas de rodapé que permitam situar os acontecimentos, aqui por vezes relatados com excessiva brevidade.