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Delito de Opinião

Memórias subjectivas (5) - senta-te comigo

João André, 03.08.18

Esta memória surgiu-me quando vinha a ouvir a música no carro. Havia em tempos passados de adolescência várias canções capazes de unir quase toda a gente que as ouvisse, fossem punks, góticos, rockabillies, metálicos, betinhos, alternativos ou outra coisa qualquer que neste momento vou esquecendo. Uma das canções que nos levantava sempre era a que se chamava "senta-te" (Sit Down).

 

Havia algo na canção que nos agarrava. Começava com o piano inicial, suave, na voz de embalo de Tim Booth que nos falava dos momentos do escuro na cama, quando todos os sonhos e, especialmente, os pesadelos nos falavam ao ouvido, na solidão do quarto. Mesmo sem ouvir - ou perceber - a letra, havia o tom em si que nos agarrava desde o início. Tínhamos o tom negro inicial, mas que era seguido de um crescendo que cantava sobre esperança e nos lembrava que não estaríamos sozinhos. Ele, o James (Tim Booth era simplesmente o veículo conhecido apenas de quem comprasse as revistas da época)  dizia-nos que estávamos com ele, que ele também tinha vivido os mesmos momentos e deles tinha saído. A chamada para nos sentarmos, feita em ritmo elevado e que nos levava a saltar, era o convite para partilharmos aquele mmento de celebração e de partilha, a epifânia que nós, por muito que nos sentíssemos sós, não o estávamos.

 

Ler a letra da canção, para quem a entendesse, fosse pelo inglês fosse pelo significado, leváva-nos ao patamar seguinte. Booth faláva-nos dos momentos negros, dos sentimentos extremos doces e amargos que não confessávamos a ninguém, mas que ele nos confessava a nós. Falava depois da incerteza, da prece a um Deus que não se sabia existir. Mesmo para quem não acreditasse em Deus (e quem verdadeiramente acredita ou não em Deus aos 13-14 anos?) , havia sempre a noção de acreditar em algo, alguém, naqueles anos de ausência da âncora que os pais tinham sido durante mais de uma década e que, de repente, já não eram, não sabendo nós bem porquê.

 

Havia no entanto os momentos na canção que indicavam a esperança depois do desespero, da angústia. Booth cantava a crença que havia uma onda que aguentaria o nosso peso, que nos levaria de onde estávamos para--- algures mais além. Cantava depois de umas riquezas não explicadas mas que sabíamos implícitamente quais eram e, noutra confissão, explicava que até poderia viver pobre se não soubesse que elas existiam. Tinha então que almejar a elas, ou a parte delas. Era o outro momento de desespero, o outro momento de depressão confessado apenas a nós, que o ouvíamos.

 

Mas depois voltava a pedir-nos que nos sentássemos com ele. O pedido inicial era para nos explicar a partilha, a confissão que o tornava um de nós, fosse qual fosse a idade dele. Os pedidos seguintes eram para agora sermos nós a partilhar os nossos sentimentos com ele. Carregássemos sentimentos de tristeza, de loucura ou de ridículo, de desadequação a uma sociedade que nos apontava como corpos estranhos. Sentávamo-nos então com Booth/James numa partilha de amor, medo, ódio e, ultimamente, lágrimas, as lágrimas que não éramos capazes de verter perante mais ninguém.

 

Esta canção era ouvida essencialmente em dois momentos, um de solidão e outro em grupos, o mais vasto possível. Para ser ouvida propriamente em solidão era necessário fecharmo-nos no quarto, numa casa idealmente vazia, com persianas semicerradas para criar um lusco-fusco adequado ao sabor delicodoce da canção. A música deveria ser ouvida múltiplas vezes enquanto nos deitávamos de costas na cama com lágrimas que correriam sem soluços, simplesmente de forma livre, como se de repente as comportas se abrissem apenas o suficiente para deixar passar o excesso de angústia, numa forma de aliviar aqueles apertos no peito que por vezes sentíamos serem demais. Era um momento de partilha apenas com James/Booth, num silêncio profundo mesmo com a música em volume elevado, numa solidão em que sentíamos tocar todos os outros no mundo que se sentiam da mesma forma. Era uma solidão que nos fazia sentir parte de uma comunidade, em oposição às multidões da escola que nos faziam sentir unicamente sós.

 

A outra forma de a ouvir era em grupo, idealmente numa discoteca ou em festas (de anos ou outras). Nunca se ouvia esta música no início da festa ou demasiado cedo na discoteca. Era sempre necessário o período de abandono que a escuridão da discoteca ou a multidão barulhenta da festa proporcionava. Antes de alguém se atrever a colocar a cassete (ou disco) a tocar a música, era necessário que os participantes do ritual tivessem já dançado de forma solta, sem passos, simplesmente girando de cabeça solta, como se os músculos do pescoço não existissem. Enquanto houvesse pessoas a ensair certos movimentos, enquanto houvesse rapazes a impressionar raparigas, enquanto as raparigas estivessem a dançar em grupos - ao invés de dançar sós num grupo - e a falar/gritar aos ouvidos umas das outras, enquanto as condições não estivessem reunidas, não se tocaria a canção. Era necessário o cansaço que baixa as barreiras, que liberta as inibições emocionais, que, no fundo, nos resumisse à nossa insegurança mais básica e nos levasse ao momento de escuridão de que Booth/James cantava.

 

Assim que as primeiras notas do piano soassem num ambiente escuro, apenas com uma pequena luz poouco mais que de presença, todos sabíamos o que vinha e gritávamos juntamente com o público na canção - era sempre a versão ao vivo da canção - em antecipação do que aí vinha. Com o início entrávamos num balanço quase cordenado mesmo quando dessincronizado. Rapazes agarravam raparigas pela cintura, por detrás, mesmo quando eram apenas amigas ou às vezes nem isso. Não era um momento de amor, mas era um momento de paixão, de emoção intensa que obrigava a que fosse partilhado. Rapazes abraçavam-se a outros rapazes de uma forma que seria ofensiva noutras situações. Raparigas abraçavam-se também e choravam abertamente, no único momento em que isso não repeleria os rapazes. Os momentos iniciais de calma, de piano a unir toda a gente, eram então seguidos do pedido para nos sentarmos juntos com James/Booth. E era isso que fazíamos, figuradamente, que literalmente saltávamos, em saltos coordenados seguindo o ritmo da canção. Éramos os animais do circo que eram guiados alegremente pelas palavras e notas da canção. Partilhávamos aqueles momentos em conjunto, numa comunhão que não sentíamos possível em mais nenhum momento. Enquanto saltávamos juntos sentíamo-nos todos um único ser, novamente sós no nosso colectivos, mas alegres por isso mesmo, por sermos quem éramos, jovens e com todo o horizonte pela frente. Estávamos sós na multidão, mas felizes por isso, porque estávamos todos sós da mesma forma.

 

Sit Down terá poupado muitas sessões de terapia a muita gente. Numa altura de angústias, de incertezas, de desenquadramento num mundo que não nos compreendia e que não compreendíamos, a música oferecia-nos a libertação, a compreensão e esperança que precisávamos. Em solidão a música seria seguida por silêncio, para apreciarmos devidamente o que nos tinha oferecido, aquele momento e aquela clareza de espírito que tinha trazido consigo. Em grupo a música era essencialmente o momento de regressar. Na discoteca a música seria seguida pelo acender de luzes e pela debandada geral. Mesmo nas sessões de matinés, em que saíamos para uma rua cheia de luz encandescente, havia um sentimento de vazio e de oportunidade de voltarmos a encher o nosso copo de emoções. Todas as emoções de adolescência eram dolorosas porque excessivamente extremas. Sit Down oferecia o momento de esvaziarmos o nosso corpo dessas emoções, mesmo que só por um pouco, oferecia o abandono e o alívio pelos quais todos os adolescentes anseiam.

 

Não posso falar por todos os adolescentes que ouviram a música na mesma altura que eu, apenas pela comunidade onde me inseria. Sit Down era um hino não comentado, apenas vivido. Conhecia quem, como eu, se recusasse a ter a música na colecção de cassetes, por medo de banalizar o seu efeito, mesmo que não o soubéssemos e não o reconhecêssemos. Era uma música para ser ouvida a espaços, só quando estivéssemos com necessidade do alívio e da partilha que trazia.

 

Quando a ouvi hoje não senti o mesmo porque não sinto as mesmas coisas que quando tinha 13-14-15-16 anos de idade. Não tenho os sentimentos extremos desses tempos. Também não senti qualquer nostalgia por esses tempos, como algumas outras canções poderiam trazer, outras canções que nos fazem recordar tempos bons e esquecer os sentimentos de desadequação, de ausência e de não pertencer a nenhum lado, a nada nem ninguém. Sit Down faz-me lembrar precisamente as angústias desses tempos sem que as relativize ("nem sabíamos que eram os melhores momentos das nossas vidas" é um tema frequente quando se discute a adolescência). Faz-me lembrar que os sentimentos dessa altura, por muito que fosse uma altura maravilhosa para quem a veja desta distância, era um período unicamente difícil.

 

Mas ao ouvir a canção lembro esses sentimentos sem os viver. Sinto essencialmente esse momento de união - não com os amigos de hoje ou os amigos de então como são hoje. Sinto-me novamente unido aos amigos desses tempos precisamente nesses tempos, como se fosse transportado para aquela discoteca, pequena, suja, mal cheirosa, escura, e me pusesse a saltar com a multidão, unido pela música e apesar da distância temporal. É uma união ténue, porque não sinto o mesmo, mas sinto a recordação do sentimento e isso, pelos minutos que dura a canção, basta.

 

Por 5 a 7 minutos, sento-me, juntamente com o adolescente que éramos naquels momentos de partilha. O único adolescente único e colectivo que existia no mundo, ou pelo menos na cidade, discoteca ou sala onde a música fosse ouvida. E sorrio como então.

 

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