Desencadeei em 2017 um projecto de uma viagem que em determinado momento me levou a conhecer a Ucrânia.
A ideia original não foi minha pois apanhei-a numa conversa no bazar de Teerão. Um holandês andava a circular de moto pela Eurásia por etapas. Após cada troço de cerca de uma semana ou duas, deixava a moto estacionada e regressava a casa para mais um período de trabalho. Logo que tinha oportunidade regressava de avião para onde a tinha deixado e continuava rumo a este.
Dentro desta linha, juntamente com o meu irmão e mais dois amigos compramos um já idoso Mercedes a gasolina, cujo bloco do motor poderia ter equipado um tanque militar. Adquirimo-lo a preço de revenda, sem garantia e com vários maduros na chapa, o que ajudou a que não ficasse muito caro. As letras da matrícula da nossa querida máquina (JR) inspiraram a alcunha que acabamos por lhe atribuir, Jairzinho. Não era muito criativo, mas nessa altura o Jair Bolsonaro não era mais do que um desconhecido em ascensão, e o nome assim era simplesmente improvável.
Sem saber onde ia terminar a viagem, achamos que fazia sentido começar todo o projecto no Cabo da Roca. Assim, debaixo do sol domingueiro nos idos de Maio de 2017, almoçamos na Tasca da Boa Viagem na Ericeira. Fomos ao ponto mais ocidental da Europa continental e regressamos a casa. O nome da tasca era, e foi, um bom augúrio e tudo correu pelo melhor.
A maior dificuldade era sair de casa tendo um local alinhavado para estacionar, de forma a que quando chegássemos ao destino não perdêssemos muito tempo à procura de onde deixar o carro.
Muitos telefonemas e alguns emails mais tarde, tudo ficou combinado. Havia um sérvio, amigo de um outro tipo que tinha um avaliação positiva numa plataforma de internet que alinhava na coisa. Por 20 euros por mês guardaria o carro numa povoação na margem norte do Danúbio, bem próximo de Belgrado. Com este local e a data de regresso a fazer de baliza, idealizamos um trajecto pelos Balcãs, que apenas um de nós tinha parcialmente visitado.
Quando o grande dia chegou, seguimos sem interrupção quase até Verona. Depois de uma merecida noite de descanso, entramos na Eslovénia, seguimos pela costa de Croácia, Bósnia, Montenegro, Albânia, Kosovo, Macedónia (agora “do Norte”, à época apenas “ex-República da Jugoslávia”) e Sérvia. Foi uma memorável semana, carregada de descobertas, excelentes memórias, que já alimentaram vários postais aqui no DO. Pouco mais de um ano depois, regressamos para junto do nosso Jairzinho, que, entretanto, necessitara de uma nova bateria, e seguimos para a Roménia, Moldávia (com uma passagem pela Transnístria) até à Ucrânia. A paragem na Ucrânia foi condicionada ao facto de um nosso vizinho ucraniano nos ter assegurado que a sua família tinha onde guardar o nosso veículo durante o tempo que entendêssemos necessário. Este nosso amigo, a sua esposa e mais tarde os filhos, adoptaram Portugal como país para residir e trabalhar. Como tivemos mais tarde oportunidade de expor aos seus pais e restantes familiares que nos aceitaram à mesa num memorável jantar, este casal e os seus filhos eram considerados pelos que os tinham recebido como estrangeiros, como uns notáveis embaixadores da Ucrânia. Trabalhadores exemplares, cumpridores das suas obrigações, facilmente sorridentes e cordiais, esforçados e competentes aprendizes da língua de Camões, fizeram-nos a todos ter a consciência da sorte que tínhamos nos emigrantes que nos tinham tocado.
Soube anteontem que o seu filho mais novo, contra todas as recomendações, insistiu há duas semanas em regressar à Ucrânia para o aniversário da namorada. Está agora na pequena povoação onde vivem os seus avós e demais família, impossibilitado pela lei marcial de atravessar legalmente a fronteira.
Não me esqueço da conversa que tive com o pai dele pelo telefone na qual me disse: “Se alguém nos ajudar, é a terceira guerra mundial”. Voltámos a falar hoje. Estava numa manifestação de apoio ao seu país, e por sugestão da organização tinha levado alguns bens que serão enviados para apoiar as forças armadas ucranianas.
Nesta sequência ainda fomos à Bielorrússia, mas isso fica para outro postal.
Não posso terminar este texto sem que aqui registe uma outra memória, mais antiga, de 1997, quando estive em Moscovo e São Petersburgo. Durante duas semanas que por ali andei juntamente com um outro amigo, fui exemplarmente recebido pela família de uma amiga desse amigo, e onde celebrei o meu aniversário. Ouvi os parabéns cantados em russo, recebi uma prenda que guardo com saudade e brindámos com vinho e vodka em repetidos nasdrovie, que garantiram uma avaliação bem positiva dos fígados tugas.
Dentro da Rússia pós-soviética, esses eram tempos bem diferentes dos actuais. O pai e a babuska babulinka da nossa amiga eram sobreviventes do cerco de Leninegrado. O pai dela, então patriarca da família, além de sobrevivente do cerco, era também um cientista graduado e reformado das forças armadas, cuja última missão tinha sido selar a central de Chernobyl. Para nós, jovens oriundos de uma aldeia do oeste de Portugal, foi uma experiência que nos proporcionou um misto de geopolítica e de história contada na primeira pessoa. Para eles, não deixou de ser uma oportunidade de ter contacto com alguém do outro lado. A recepção foi muito calorosa. Recordo-me da babuska babulinka ouvir-nos na apresentação do nosso país, enquanto folheava o guia turístico em alfabeto cirílico que tínhamos levado. O que para nós era é o banal mar oceano da Nazaré, para ela foi motivo para longas carícias às fotografias do livro. Nesse momento terei tido pela primeira vez a noção do meu espaço, da praia onde tinha passado as férias da minha infância, do tempo e espaço no nosso globo.
Um tio meu, de quem já aqui falei e que já lá está, quando soube que íamos à Rússia disse-nos: “Vão para a Rússia? Aquilo é um sítio cinzento e frio. Vão para lá fazer o quê?” Essa era a ideia corrente que se tinha na altura da ex-União Soviética.
![Scan10172.JPG]()
Não é muito visível, mas naquele tempo trocavam-se na Praça Vermelha as estrelas soviéticas dos topos dos edifícios, pela águia das duas cabeças. A torre à esquerda ainda está na versão soviética, e nas duas da direita procede-se à sua substituição.
Trouxe para aqui estas minhas memórias da Rússia do final do século passado apenas para salientar algo que não será surpresa para ninguém, mas que deve ser lembrado e que tem a ver com a diferença entre um povo e os seus dirigentes. Na mesma medida em que Salazar não era Portugal, os Aiatolas não são o Irão, Putin não é a Rússia e o meu amigo Sergey e a sua calorosa família não são a Ucrânia. É muito mais fácil embarcar numa vaga de entusiasmo do que ficar sozinho no cais a fazer perguntas. Ao dizer isto não pretendo minimamente reduzir os crimes de Putin, mas apenas lembrar que há coisas que são totalmente diferentes quando observadas de perto ou de longe. As inúmeras manifs a que temos assistido, são contra os crimes de Putin e não contra a Rússia e o seu povo. Digo isto do alto de quem já privou com ambos os lados. O que se está a passar no leste europeu, mais do que qualquer outra coisa, é a confirmação de uma deformação de carácter do líder russo, assim como dos maluquinhos que preenchem a sua primeira linha de comandantes. São eles os nossos inimigos, não os russos.