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Delito de Opinião

Memórias de uma activista partidária

O General por todas e todas pelo General

Maria Dulce Fernandes, 19.09.24

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Em 1976, os portugueses foram chamados pela primeira vez às urnas para eleger o Presidente da República, que iria substituir após sufrágio universal o até então Presidente Francisco da Costa Gomes, indicado para o cargo pela Junta de Salvação Nacional, após o pedido de demissão do General António de Spínola em Setembro de 1974.

Creio que não havia jovem da minha idade que não tivesse um interesse partidário ou fosse activista filiado num partido, como era o meu caso e o da minha melhor amiga.

Concorriam às eleições presidenciais o General Ramalho Eanes, que contava com o apoio do PS, PPD, CDS e MRPP, o já General Otelo Saraiva de Carvalho, apoiado pela UDP, MES, FSP e PRP, o Almirante Pinheiro de Azevedo, como candidato independente, e Octávio Pato, com o apoio do PCP e das suas ramificações, como a UEC, por exemplo.

Os filiados dirigentes de núcleos e células tinham como objectivo primordial angariar votos para o candidato apoiado pelo seu partido, onde quer que fosse. Sendo eu estudante, fiquei encarregada (pelo coordenador do Partido Socialista a quem respondia directamente) de coordenar a campanha eleitoral no Liceu, com folhetos informativos palestras e pósteres. A direcção do Liceu tinha, para o efeito, improvisado um mural em contraplacado para afixar tudo o que fosse propaganda eleitoral.

Todos os dias de manhã seguia eu para o liceu com um pequeno balde, uma trincha, uma latinha de cola, um ror de panfletos e os pósteres com a foto do General Eanes (que iam mudando a figura e a mensagem com alguma frequência), e começava por colar estes últimos no mural. Depois, com a ajuda de mais cinco ou seis camaradas, distribuíamos os panfletos pela carteiras ainda vazias das salas de aula. Tudo isto feito muito rapidamente e até poucos minutos antes de tocar para a entrada, para não dar tempo de as facções rivais nos apanharem os papéis e os deitarem para o lixo, substituindo-os depois pelos seus próprios panfletos. Era uma guerra de coordenação e paciência. Quando começámos, se encontrávamos panfletos nas carteiras, juntávamos os nossos e pronto. As meninas da UEC jogavam sujo. Destruíam todos os folhetos que encontravam e deixavam apenas os delas, colavam os pósteres do Octávio Pato por cima dos outros e, à falta de material para cobrir o exposto, faziam bigodinhos à Hitler nas fotos do General Eanes.

Toda esta sacanice era coordenada pela minha melhor amiga e colega de carteira, coordenadora da propaganda eleitoral no Liceu, pela UEC do PCP e do Senhor Pato. Ao princípio levámos tudo aquilo na desportiva, mas depressa compreendemos que as meninas uéques estavam irredutíveis porque tinham “recebido ordens” e nunca as iriam contrariar. Aí é assim? Está bem. Também sei jogar sujo quando é preciso.

Fiz um desenho fácil de reproduzir e arranjei giz colorido. Missão: desenhar um pato depenado e escrever "UEC, UEC, UEC, abriu a caça aos Patos", em todos os quadros negros de todas as salas de aula.

Fazer isto todos os dias, colar cartazes, distribuir folhetos e “dar palestras” implicava chegar ao Liceu às sete da manhã, ficar por lá até às cinco e meia da tarde e passar os intervalos de guarda ao mural dos pósteres. Muitas vezes quando lá chegávamos já estava tudo destruído, o que acontecia nos minutos das aflições para chichis durante as aulas, por isso passámos a ficar muitas vezes aflitas também e de tal modo que a professora de matemática escreveu um recado para os meus pais, alvitrando possíveis problemas de bexiga.

A minha amiga e eu tínhamos um pacto de não-agressão e não discutíamos o trabalho politico-partidário que cada uma estava encarregue de fazer. Mas éramos mazinhas umas para as outras e a única maneira de vencer a campanha no Liceu, era pelo cansaço.  Passámos então a colar pósteres mais pequenos do General Eanes nos tampos das carteiras das meninas da UEC. Todos os dias. Tendo como ponto de ordem a erradicação de toda a propaganda contrária às directrizes do partido, tinham as pequenas uéques de arrancar as colagens de onde quer que estivessem. Ora a cola que utilizávamos nos tampos das carteiras não era diluída, pelo que tinham forçosamente de conviver com o nosso General boa parte do tempo lectivo, até conseguirem arrancar dali aqueles fascismos.

De uma certa forma ganhámos na propaganda e depois nas eleições. Foi uma festa. Foi hercúleo o esforço para não rir nem grasnar no dia  escolar que veio após as eleições. 

Curiosamente, as apoiantes da candidatura de Otelo Saraiva de Carvalho, talvez por pensarem que a eleição eram favas contadas, não tiveram grande impacto na vida estudantil no Liceu. Olhavam-nos do alto da sua certeza com algum desprezo e apenas protagonizavam sessões de esclarecimento programadas. Tinham os pósteres do seu candidato intocáveis por acordo tácito e não nos incomodavam. Era como se não existíssemos. Sobre Pinheiro de Azevedo, muito pouco se viu ou ouviu, por isso a batalha “do bem contra o mal” foi basicamente PS+PSD+CDS+MRPP, contra a UEC do PCP.

Como acontece na vida de todos nós, passado o calor da primeira vez, tudo voltou ao que era dantes, sem ressentimentos, porque as amizades fortes não se destroem com ideologias, aceitam-se e continuam como sempre foram. Ainda nos rimos de todas essas peripécias, mas depois de a minha amiga ter partido como cooperante para Angola, perdi-lhe o rasto.  A sua família entretanto mudara de cidade, eu também mudei de casa e o PCP nunca me respondeu aos e-mails, que ainda continuo a enviar, com menos frequência  é certo, mas com esperança de que alguém por lá os leia e me saiba dar notícias dela.

Agora as campanhas eleitorais são feitas online, carregadas de aldrabices no X e em outras redes sociais. Muito pouco me admiraria se num futuro próximo os votos se contabilizassem em likes.

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