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Delito de Opinião

Memórias

José Meireles Graça, 25.10.20

Acontece-me ultimamente ter a desagradável sensação de que já disse isto. O facto, a terceiros, não impressiona: ninguém se lembra, e menos ainda procura, do que eu já disse. Depois, imagino um tetraneto que tenha, por quem eram os tetravós, a mesma curiosidade eu que tenho pelos meus, e que talvez ache graça a eventos incompreensíveis perdidos na memória dos tempos e a um antepassado incontinente verbal.

Daí que tenha começado a construir uma base de dados, com a data, o título, e os assuntos, de todos os artigos que já escrevi em blogues finados ou actuais, por aqui e por ali. Isso implica às vezes reler e tropeçar em coisas que hoje não diria, outras que não diria da mesma maneira, outras obsoletas e outras – a maioria ꟷ sem interesse nem sequer para mim. Também aparecem textos absolutamente seminais sobre matérias do maior relevo, como foi o caso com um luminoso post sobre a problemática do bacalhau fritado.

Algumas pessoas que beneficiaram da minha consistente aversão já se passaram para o Inferno, ou para rendosos tachos, ou para um merecido anonimato; mas classes profissionais destinatárias de não poucas objurgatórias não se extinguiram, lamentavelmente, e estão aí pujantes, a reclamar que se lhes vergastem as orelhas.

A mais saliente dessas é a dos economistas. Hoje tenho mais amigos dentro dessa agremiação do que os que contava então, e acontece-me a contragosto concordar com isto ou aquilo, reconhecer-lhes inteligência, e constatar desconsolado que alguns – os melhores ꟷ chegam a ponto de ter dúvidas e serem modestos, pelo que reforcei o desgraçado vício de lhes ouvir os arrazoados. Mas não mudei substancialmente de opinião, que, em Janeiro de 2013, era esta:

Tenho para mim que o grau de doutor em ciências económicas deveria automaticamente inibir o infeliz académico do desempenho de quaisquer funções públicas com competências legislativas naquela área, salvo exame prévio de normalidade cognitiva.

 

É fácil, com alguns exemplos, perceber o porquê deste parti-pris: boa parte das decisões que a cada novo orçamento se tomam, assim como as avulsas que se vão tomando ao longo do ano, destina-se a corrigir os efeitos perversos das anteriores; os economistas que forem europeístas admitem agora pacificamente que o Euro nunca deveria ter entrado em vigor sem uma muito maior dose de integração, nomeadamente sem veleidades independentistas em matéria orçamental e financeira; e o grau de incapacidade para fazer a mais leve previsão razoável só ombreia com a suficiência com que se fazem novas previsões igualmente fantasistas.

 

Mas isto é uma constatação; e cabe perguntar que mecanismo perverso é esse que faz com que a economia seja tão difícil de entender para a maior parte dos especialistas nela, a tal ponto que não há desastre verificado, e com frequência facilmente previsível, que não tenha tido o alto patrocínio de gurus da ciência económica.

 

Como princípio de explicação, creio que a exigência mesma da carreira académica, com a sua interminável bibliografia, a sua incessante procura de casos pregressos para demonstrar uma causalidade, constatar uma correlação, afinar uma tese que se intui: casa mal com uma realidade em permanente mutação, sobre a qual se pretende agir sem haver nem o tempo nem os meios para sequer a entender. Acresce que os agentes económicos são pessoas; e só não recomendo psicólogos para tomarem decisões sobre economia por ter fortes suspeitas de que esta variedade de teóricos está mais vocacionada para consolar cidadãos a quem faleceu um ente querido.

 

Depois, o principal mecanismo da criação de riqueza, se tem na sua base o conhecimento científico que depois a tecnologia aplica, passa pelas empresas e, dentro destas, sobretudo pelas pequenas. Ora, a realidade das empresas é de tal natureza que não dispensa o saber de experiência feito - a formação em gestão habilita sobretudo na emissão de opiniões sobre a gestão dos outros, como se evidencia com o facto infeliz de as centenas de gestores que as universidades despejam no mercado se absterem cuidadosamente, no geral, de fazer empresas.

 

Seria todavia precipitado dizer que deveria haver empresários ao leme das decisões políticas: o conhecimento deles vale para a empresa, quando muito para o ramo, e a receita do sucesso de hoje não é necessariamente a mesma do de amanhã; o País não é uma empresa, o grau de complexidade das decisões é infinitamente maior ter meia dúzia de perspectivas correctas e ideias acertadas sobre gestão é curto (lembro-me do defunto engº Belmiro de Azevedo que, inquirido sobre as reformas necessárias ao País, começou uma vez pelo organograma do Governo, com aquela suficiência que resultou tão bem nos negócios, e resultaria tão mal se a tentasse transpor para a carreira política que sensatamente evitou).

 

Resta o senso comum que, contraditoriamente, nada tem de comum no seio dos economistas que nos governam e, pior, raramente se traduz em bom senso. Se não, como explicar isto que um advogado escreve?

 

Notas: i) Texto editado; ii) O advogado referido no último parágrafo é, se não estou em erro, o dr. Ferreira de Almeida, que felizmente ainda anda por aí, embora já não se dê tão frequentemente ao trabalho de escrever; iii) O incidente para o qual o link remete era a abusiva obrigação, que o Fisco impôs, de novas máquinas registadoras, quase um pecadilho antes da longa lista de exacções em que aquele organismo inquisitorial se especializou; iv) O ministro da época era o desastre Vítor Gaspar, felizmente desaparecido nas profundezas do FMI, detestado pela esquerda acéfala, isto é, toda, e por aquela parte da direita, minoritária, que achava a austeridade necessária mas por via do corte de despesas e não do aumento de receitas. A parte restante achava que se deveria cortar nas despesas mas desde que ninguém fosse despedido, não se extinguissem serviços que invariavelmente eram essenciais para quem deles beneficiava, e portanto efectuou grandes poupanças no papel higiénico, no ar condicionado e com os famosos cortes transversais em salários e pensões, que tinham a grande virtude de resolver problemas no imediato, e nenhuns no futuro.

Não mudei de opiniões. E como o futuro próximo é de austeridade, chame-se o que se lhe chamar, o textinho venerando continua actual. Por isso o repesco.

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