Memória do grande exterminador
Estaline morreu há 70 anos após aniquilar 20 milhões de pessoas
«O maior dos prazeres é escolher a vítima, preparar o golpe, consumar a vingança e depois ir para a cama.»
Estaline
Faz hoje 70 anos, morria um dos tiranos mais execráveis que o mundo já conheceu. Estaline sucumbiu ao fim de quatro dias agonizante, vítima de trombose após um serão bem comido e bem regado na sua vasta mansão oficial, numa floresta a sul de Moscovo. Vivia ali como lobo solitário, protegido por uma bateria anti-aérea e um corpo de segurança pessoal composto por 300 homens.
Ninguém lhe valeu quando mais precisava.
Até ascender ao posto supremo do Estado soviético, onde se manteve durante quase três décadas, foi liquidando todos os rivais, um a um. Reza a lenda que na juventude, já como militante comunista, chegou a cometer homicídios. Na galeria de genocidas da História, poucos lhe disputarão a liderança: tem 20 milhões de cadáveres no cadastro. «A morte de um indivíduo é uma tragédia, a morte de um milhão é uma estatística», costumava dizer, no seu brutal cinismo.
Só entre Julho de 1937 e Novembro de 1938, ordenou pessoalmente a execução de 800 mil pessoas - num infame morticínio que passou à história como a Grande Purga. No seu delírio compulsivo, o tirano culpava aqueles que mandou liquidar a tiro de serem "inimigos do povo", "espiões a soldo de potências estrangeiras", "contra-revolucionários", "burgueses cosmopolitas" e outras imaginativas expressões da escolástica marxista-leninista.
Era o terror estalinista no expoente máximo: naqueles 17 fatídicos meses, o Estado soviético executou 1500 vítimas por dia, ao ritmo de um assassínio a cada 57 segundos. Adolescentes de 14 e 15 anos também recebiam a bala fatal. Dizia-se em Moscovo que a Lubyanka - sede da sinistra polícia política - «escorria sangue».
Dois terços dos 139 membros do Comité Central do PCUS - eleito no congresso de 1934, o chamado "congresso dos fuzilados" - desapareceram nesta voragem homicida. Em 1940, apenas sobreviviam dois dirigentes que figuravam com Lenine no Comité Central contemporâneo da revolução soviética de 1917: Alexandra Kollontai, na prática exilada como embaixadora na Suécia, e o próprio Estaline.
Lenine avisara no seu testamento político, em Janeiro de 1923: «Estaline é brutal, deve ser impedido de tomar o poder.» O fundador da URSS - eminente teórico do Estado como instrumento de repressão - conhecia bem o discípulo que se tornou seu sucessor. Sabia que o ex-seminarista georgiano jamais hesitaria em aniquilar quem pudesse ameaçar a sua obsessão pelo poder absoluto.
Desde a morte da segunda mulher, em 1932, Estaline foi-se isolando cada vez mais. Considerou uma "traição" aquele inesperado suicídio de Nádia, com um tiro no coração. Vingou-se na sua familia - e no povo soviético. Enviando milhões de perseguidos políticos para os campos de extermínio na Sibéria - o tristemente célebre "Arquipélago Gulag" onde se trabalhava 12 horas por dia, às vezes com 50 graus negativos, e se sucumbia de frio, fome, exaustão, doença e desespero.
Estaline mandou envenenar um cunhado em 1938 e enviou uma cunhada para o Gulag, acompanhada de uma sobrinha. Em 1941, deu ordem de execução a outro cunhado, irmão da primeira mulher.
Nada disto impedia que fosse glorificado por parte da intelligentsia ocidental da sua época, incensado por alguns basbaques diplomáticos (Joseph E. Davis, embaixador norte-americano em Moscovo, dizia que ele era o género de homem em cujos joelhos «uma criança gostaria de se sentar») e até por muitos imbecis já nascidos após a sua morte. No Portugal revolucionário de 1975 eram frequentes os comícios de partidos da extrema-esquerda em que se exibiam grandes retratos deste déspota, enaltecido como «libertador dos povos».
Encerrado em ambiente palaciano como os imperadores da era antiga, este autoproclamado "revolucionário" morreu como viveu quase sempre: mergulhado na solidão. E foi vítima dela. O escasso pessoal com acesso aos seus aposentos privados tinha estritas indicações para não perturbar o amo. Daí ter passado longas horas em agonia, sem que ninguém o socorresse naquela madrugada de 1 de Março.
Dos médicos que costumavam tratá-lo, todos haviam sido removidos pouco antes: o tirano, num delírio paranóico, convencera-se que tinham urdido uma conspiração para o liquidar aos poucos. Mandou prendê-los e alguns só escaparam à execução porque o sucessor de Lenine se finou primeiro.
Todos os ditadores, por mais cruéis que sejam, têm pequenas fragilidades. A de Estaline era o Concerto para piano n.º 23 de Mozart, sua peça musical favorita. Dizia-se que, ao escutá-la, se comovia até às lágrimas. Talvez a tivesse ouvido naquela noite em que tombou de vez no chão do quarto, condenado à fatal pena a que ninguém escapa, partilhando o destino com todos quantos mandou matar.