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Delito de Opinião

Malandrice, empatia e fair-play

João Campos, 11.05.21

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Em Agosto de 2019 tive a oportunidade de passar duas semanas a trabalhar na Malásia na companhia de colegas com os quais até aí só falara por telefone ou chat. Quis a sorte que os astros se alinhassem e que cá em casa pudéssemos tirar partido disto: a minha companheira conseguiu tirar férias, conseguimos comprar-lhe um bilhete, e lá fomos até ao Sudeste Asiático (em vôos separados, o que foi uma chatice, mas valeu a pena). Enquanto eu passei os dias a trabalhar, ela entreteve-se a passear por Kuala Lumpur - algo bastante conveniente também para mim, pois provavelmente não teria ido a metade dos sítios que visitei naqueles finais de tarde se não estivesse acompanhado (não sou grande turista, admito, enquanto a Ana planeou tudo, tratou de comprar bilhetes para os monumentos a visitar, etc).

No início da primeira semana calhou a visita à Torre de Kuala Lumpur. Saí do trabalho, meti-me num Grab (a versão local da Uber), e fui ter com a Ana à entrada da torre. Vista magnífica do topo, a dar a dimensão real da capital malaia. Naquele tempo ainda se viajava, pelo que não faltavam por ali turistas de inúmeras nacionalidades - percebíamos pelas palavras que íamos ouvindo, de idiomas europeus como o francês ou o italiano a idiomas asiáticos para nós incompreensíveis. E, como não podia deixar de ser, não éramos os únicos portugueses nas imediações - identificámos o casal como sendo português assim que saíram do elevandor, mesmo antes mesmo de os ouvirmos falar, pois o rapaz vestia uma camisola do Sporting.

Aqui talvez valha a pena explicar que dois dias antes (um dia e meio se considerarmos o fuso horário?) o Benfica tinha derrotado o Sporting por 5-0 na Supertaça.

Inevitavelmente, o primeiro pensamento que me ocorreu foi aproximar-se do meu compatriota, levantar a mão e dizer-lhe na língua de Camões "dá cá mais cinco". Ainda nos rimos a imaginar a cena, eu e a Ana, que como eu é também benfiquista. Já o segundo pensamento - não sou muito impulsivo - foi um pouco mais empático: a dezasseis mil quilómetros de casa, com ar de quem tinha discutido com a namorada no elevador, e ainda a ressacar pela derrota distante contra o eterno rival, decerto que a última coisa que aquele rapaz quereria encontrar no topo daquela torre naquele magnífico fim de tarde seria um sacana de um benfiquista a gozar o prato. Seria cruel, convenhamos. Com isso em mente (e com algum instinto de auto-preservação, confesso - não sou especialmente bem constituído, estava para aí a trezentos metros de altitude, e a ciência ainda não me deu um jetpack), optei por não dizer nada. E continuámos, eu e a Ana, a deliciar-nos com aquela vista espantosa de Kuala Lumpur, que com o cair da noite se assemelhava mais e mais às vastas metrópoles da ficção científica cyberpunk de que ambos somos fãs (a fotografia lá no topo não é grande coisa pois nem a câmara nem o fotógrafo eram grande coisa, mas fica o registo).

Recupero esta memória, que hoje parece tão distante, no dia em que o Sporting se sagra campeão nacional de futebol. A esta altura do campeonato já não tinha nenhum cavalo nesta corrida - do pouco que vi do Benfica em campo não me pareceu que merecessem ganhar o que quer que seja, e fora do campo a coisa dá asco - pelo que o resultado do jogo de hoje me era mais ou menos indiferente. Por norma, se tiver de escolher entre o Porto e o Sporting até prefiro ver os leões a vencer, se bem que nunca saia a perder dos confrontos - afinal, as derrotas leoninas são sempre um bom pretexto para provocações malandras aos meus amigos sportingistas.

Mas a verdade é que são justamente esses amigos quem importa hoje. Os anos têm-me tornado mais introvertido, mas tenho a sorte de manter muito bons amigos - e, entre eles, vários sportinguistas. Alguns já ouviram (leram) as inevitáveis provocações em privado, claro, e ainda terei mais algumas para os próximos dias. As piadas, admita-se, até se escrevem sozinhas (da última vez que isto tinha acontecido ainda andava eu na escola secundária, agora só em 2040, etc). Mas hoje esses amigos estão felizes, tão felizes como eu estava naquele entardecer há dois Verões, numa cidade espantosa que até então nunca tinha pensado visitar; e eu, pela parte que me toca, fico feliz pelos meus amigos. Por isso, e porque o desporto vale nada sem fair play, dedico esta memória, estas provocações bem intencionadas e este texto mal amanhado (começa a faltar-me prática, a Teresa Ribeiro bem me avisou há uns anos num jantar do Delito) aos meus amigos lagartos de tantos e tantos anos - ao João e ao Jorge, ao Miguel e ao Fernando, à Susana e ao Ricardo. E ao nosso Pedro Correia, claro, e aos leões e às leoas do Delito. Hoje a festa é vossa - aproveitem!

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