Saltar para: Post [1], Comentar [2], Pesquisa e Arquivos [3]

Delito de Opinião

Mafalda e o fim do jornalismo

Pedro Correia, 08.10.20

recurso.gif

 

O recente desaparecimento de Quino, o criador da inesquecível Mafalda, constitui um marco simbólico da morte do jornalismo. Porque as suas histórias centradas na menina preocupada com os males do mundo se inseriam numa longa linhagem com diversos outros expoentes, tanto por via ascendente (basta lembrar o Charlie Brown, de Charles Schulz) como descendente (Calvin & Hobbes, de Bill Waterson, por exemplo), todas criadas para publicação na imprensa. E a ela unidas por um cordão umbilical.

Durante décadas, os leitores de jornais conviveram com a banda desenhada: não havia jornais de referência sem histórias aos quadradinhos - sérias ou cómicas, com argumentos longos ou curtos, a cores ou a preto e branco. Tal como não havia jornais sem caricaturas, com frequência inseridas em espaços nobres - até nas primeiras páginas. É uma tradição que remonta ao apogeu da imprensa como veículo de informação e conhecimento, na segunda metade do século XIX, e prolongada por todo o século XX.

 

A voragem trituradora da "globalização" foi pondo fim a tudo isto. O argentino Joaquín Salvador Lavado Tejón (imortalizado com o nome artístico Quino, diminutivo que era aumentativo) não conseguiria hoje encontrar espaço para publicar as suas vinhetas. Muito menos de exportá-las para o mundo inteiro, como sucedeu com a Mafalda.

Basta ver o que acontece cá: a banda desenhada desapareceu dos jornais. As caricaturas que outrora contribuíram para a fama de Rafael Bordalo Pinheiro, Almada Negreiros e Stuart de Carvalhais foram praticamente abolidas da imprensa cordata, reverente e "normalizada", cada vez mais dependente da agenda (e da verba) oficial. Os cartunistas que restam policiam-se a todo o momento, com receio de serem apontados a dedo pelas brigadas da correcção política ou, no limite, conhecerem o dramático destino dos seus colegas do Charlie Hebdo.

 

Numa das suas tiras mais famosas, Quino desenhou a sua personagem favorita encontrando na praia uma menina baixinha e magrinha, de tamanho irrelevante, e perguntou-lhe: «És tão pequenina! Como te chamas?» E ouviu esta resposta: «Liberdade.»

Foi há meio século, mas poderia ter sido hoje. Quino experimentou o peso da ditadura no país natal, como aconteceu com tantos criadores noutras paragens. Hoje há mais democracia no planeta, sem dúvida, mas nada garante que exista mais liberdade. E o problema central é mesmo este.

Poderíamos questionar-nos o que diria a Mafalda de tudo isto. Existirá uma nova Mafalda escondida por aí?

5 comentários

  • Imagem de perfil

    Pedro Correia 08.10.2020

    Há excelentes desenhadores, caricaturistas, humoristas gráficos no desemprego. Ou esquecidos, relegados para um canto.
    Tanto talento desperdiçado. Começando pelo jovem talento: há muita vocação que se perde para sempre nesta área.

    Nunca me esquecerei que Augusto Cid, um dos mais brilhantes cartunistas portugueses da segunda metade do século XX, acabou os dias sem trabalho, depois de lhe terem oferecido - quase por esmola - um pagamento insultuoso no último jornal por onde passou. Pagamento que ele dignamente recusou.
  • Imagem de perfil

    Isabel Paulos 08.10.2020

    Acredito que tudo isso seja verdade, mas temos que nos adaptar à evolução do tempo.

    Havendo desempregados talentosos, que venham para o digital partilhar a sua obra connosco. Bem sei que é preciso pagar uma assinatura mensal da internet, mas desde que o mundo é mundo que a vida nunca foi fácil para quem cria.

    Criação e emprego bem remunerado nunca jogou bem.
  • Imagem de perfil

    Pedro Correia 08.10.2020

    O problema é que estas pessoas são empurradas para a borda do prato por serem irreverentes. E grande parte dos titulos jornalísticos castigam a irreverência em vez de premiá-la.

    Muitos responsáveis editoriais querem um jornalismo "sem chatices". Cada vez dão maior destaque às chamadas publirreportagens ou àquilo a que chamam jornalismo "feel good", coisa fofinha, com muitos "percursos", hotéis "extraordinários" e restaurantes "inovadores".

    É isso que está a dar.
  • Sem imagem de perfil

    Anónimo 21.10.2020

    Mas o mesmo se passa nos blogues e ou há poucos ou então...

    Salvo algumas excepções querem que vejamos coisas "sem chatices", fofinhas, divertidas, privadas, muitos bolos, etc.

    Isto não, isto não, isto não, isto não, ..., isto sim. Sabe bem do que estou a falar.
  • Comentar:

    Mais

    Se preenchido, o e-mail é usado apenas para notificação de respostas.

    Este blog tem comentários moderados.