Livros que inspiram viagens (3)
Na sequência da rubrica anterior sobre livros que inspiram viagens, este poderia ter exactamente o título inverso. O livro que hoje vos falo, para quem o quiser ou conseguir ler até ao fim, desincentiva a viagem. Quem no seu perfeito juízo depois de ler Se isto é um homem de Primo Levi deseja visitar Auschwitz? Eu só li o livro depois da segunda visita.
Visitei este campo de extermínio a primeira vez em 1993 durante um InterRail. Dessa vez e ao contrário do que aconteceu há poucos meses atrás, não me precavi com uma carapaça de insensibilidade necessária para sair de lá a conseguir planear o dia seguinte. Não que o Holocausto nazi fosse em abstrato novidade para mim, mas em concreto pisar o mesmo chão do que os mais de um milhão de vitimas do ódio nazi acertou-me em cheio. Fiquei arrasado.
Não vale a pena repetir a ladainha habitual do maior crime contra a humanidade, ou do horror perante o que o homem é capaz de fazer ao homem ou ainda da privação absoluta da dignidade do ser humano. O que mais impressiona é o rigor e precisão com que tudo foi planeado, organizado, anotado e fotografado.
Registo de memória a imensidão de uma sala com o chão coberto com armações de óculos retirados aos prisioneiros, outra com fardos empilhados até ao tecto de cabelo que era vendido ao quilo para a industria têxtil ou ainda as várias centenas de metros de inúmeros corredores forrados com fotografias, tiradas em três ângulos, no registo meticuloso de cada vitima. Nesta segunda vez reparei nas fotos de duas gémeas, numeradas em sequência, que segundo o registo foram assassinadas com um mês e meio de diferença.
Primo Levi descreve-nos como com o frio, a fome e os espancamentos arbitrários lhe foi retirada a capacidade de se sentir um ser humano.
“É homem quem mata, é homem quem faz ou sofre injustiças; não é homem quem, perdida qualquer vergonha, divide a cama com um cadáver. Quem esperou que o seu vizinho acabasse de morrer para lhe tirar um quarto de pão está, embora sem qualquer culpa própria, mais afastado do modelo do homem pensante do que o pigmeu mais selvagem ou o sádico mais atroz.”
Apesar de todo o terror que encerra, Auschwitz deve ser visitado. Infelizmente não foi o último campo de extermínio da história, mas quantos mais de nós o visitarmos, mais distante estará o dia em que algo idêntico possa voltar a acontecer. E esse é o apelo de Primo Levi:
Vós que viveis tranquilos
Nas vossas casas aquecidas,
Vós que encontrais regressando à noite
Comida quente e rostos amigos
(…)
Meditai que isto aconteceu:
Recomendo-vos estas palavras.
Esculpi-as no vosso coração
Estando em casa andando pela rua,
Ao deitar-vos e ao levantar-vos;
Repeti-as aos vossos filhos