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Delito de Opinião

Livros que deixei a meio (17)

Pedro Correia, 15.02.14

 

 

HARRY POTTER E A PEDRA FILOSOFAL

de J. K. Rowling

 

Os primeiros artigos que li na imprensa britânica, vai fazer 17 anos, deixaram-me de sobreaviso: estávamos perante um verdadeiro fenómeno literário. Nada a ver com a subliteratura de um Dan Brown, que estaria em foco vários anos depois, mas com a recuperação de um certo imaginário infanto-juvenil que durante demasiado tempo andou arredado dos escaparates. Tomei nota do sucinto nome da autora, que não tardaria a revelar-se uma celebridade à escala mundial: J. K. Rowling. E senti a curiosidade aguçar-se a cada nova crítica em inglês que ia descobrindo: Harry Potter relançava, actualizando-as, velhas tradições literárias entretanto caídas em desuso -- a feitiçaria, o exotérico, o extra-racional -- cruzando-as habilmente com o encantatório mundo das crianças.

Assim nos garantiam sisudos críticos rendidos ao fenómeno.

Ainda antes de a conhecer, já eu equiparava Rowling a Steven Spielberg. O que este conseguira na Sétima Arte, voltando a dar glamour ao antigo cinema de aventuras, povoado de heróis e vilões em estado puro, concretizava-o ela na literatura, abraçando sem complexos convenções de género num mundo romanesco que novamente se dividia entre bons e maus, para além dos dogmas contemporâneos impostos pela correcção política e por uma leitura estritamente racional da existência humana, descrente de bruxas, duendes e fadas.

 

Harry Potter and the Philosopher's Stone, lançado no Reino Unido em 1997, tornou-se um estrondoso sucesso à escala planetária a partir do final do ano seguinte, quando surgiu a edição norte-americana, forçando o New York Times a introduzir um quadro dedicado a livros infantis nas suas listas das obras mais procuradas pelos leitores.

A versão portuguesa também não demorou muito: surgiu em Outubro de 1999, com a chancela da Editorial Presença, que aqui encontrou um filão de ouro.

Apressei-me a comprar um exemplar -- dizendo a mim próprio que o fazia não para mim mas para a minha filha Joana, então com seis anos. Dentro de algum tempo, não muito, ela gostaria certamente de ler a obra. Faz parte dos deveres da paternidade: nada como encaminhar as crianças, na idade certa, para livros de que gostem -- com o nobre intuito de estimular nelas a apetência pela leitura.

Atingiria o meu objectivo?

 

Enquanto a dúvida subsistia -- algo compreensível, pois a minha irrequieta herdeira mal começara a juntar as primeiras letras -- abri o volume de 255 páginas, dispondo-me a regressar às minhas tardes infantis de leitor de Enid Blyton (Nódi, Os Sete e Os Cinco), da Colecção Manecas, da Colecção Histórias, das aventuras da Dona Redonda, de Emílio e os Detectives, Blake & Mortimer, Tintim, Batman e Texas Jack.

Mergulhei no universo literário de Rowling -- tão britânico e burguês na aparência, mas afinal tão abrangente e apelativo ao poder mágico dos sonhos -- com um entusiasmo semelhante ao que me levou a vibrar na infância com o Mogli d'O Livro da Selva e a Mary Poppins. O meu Peter Pan de mesa de cabeceira chamava-se agora Harry e a Bruxa Má da Branca de Neve dava pelo nome de Voldemort.

Dei três vivas aos poderes mágicos: a literatura deixara de ser o mero reflexo da baça, chã e descolorida realidade. E Harry Potter e a Pedra Filosofal trazia ainda, como brinde, a caução de respeitáveis críticos que se apressaram a incluir este título num lugar de honra da história da ficção literária.

 

Li as primeiras 150 páginas de uma assentada, confirmando a cada trecho as minhas melhores expectativas. Mas parei subitamente no capítulo XI, quando a fantasia começa a sobrepor-se sem reservas ao real. Algo estranho, pois essa era para mim precisamente a maior virtude de Harry Potter.

Iniciei outras leituras e o romance foi passando para uma camada inferior da pilha de livros acumulada na mesa de cabeceira. Passaram-se meses, decorreu talvez um ano, e já tinha esquecido o fio do enredo quando me dispus a retomar a leitura.

Aconteceu-me o que tantas vezes me tem sucedido com as mais diversas obras: recomecei do parágrafo inicial. E também neste caso aconteceu o que já relatei em números anteriores desta série: voltei a suspender a leitura precisamente no ponto em que a interrompera da primeira vez.

É possível que coisas destas aconteçam recorrentemente com outras pessoas, mas creio que a mais ninguém ocorrerá com tanta insistência.

 

Desinteressei-me de Harry Potter?

A resposta só pode ser afirmativa, pois nem sequer comecei a ler nenhum dos restantes títulos da saga, confirmada como a mais comercial de sempre: em Dezembro de 2009 já tinham sido vendidos 400 milhões de exemplares no mundo inteiro. Comprei alguns, mas logo os ofereci à Joana, que entretanto se tornou uma consumidora compulsiva destes livros -- primeiro em português, depois já em inglês.

Pelo menos neste aspecto fui bem sucedido.

Aqui entre nós: está nos meus planos chegar ao fim do primeiro volume, há tantos anos interrompido. Mas desta vez já sem qualquer vestígio da expectativa inicial: tal como a mesma água nunca passa duas vezes debaixo de uma ponte, certa magia nunca se retoma quando ultrapassamos aquela idade em que estamos sempre disponíveis para mergulhar num mundo de ilusões.

2 comentários

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    Pedro Correia 18.02.2014

    Sim, Isabel: ensinar também é aprender. Como filho de dois professores, pude testemunhar isso desde que me lembro. Os livros de J. K. Rowling tiveram, desde logo, o privilégio de pôr uma geração inteira a ler - um pouco por todo o mundo. Sei disso também, pelo testemunho directo colhido em casa.
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