Saltar para: Post [1], Comentários [2], Pesquisa e Arquivos [3]

Delito de Opinião

Liberdade de imprensa no "segundo sistema"

Sérgio de Almeida Correia, 11.03.21

PF11032021.jpg

A degradação da situação vinha a ser notada por quem trabalha nas redacções de alguns órgãos de imprensa. Publicamente ninguém diz nada, mas o cerco vinha paulatinamente a apertar. Os recados chegavam a posteriori. Era a notícia pouco favorável à imagem do poder, eram as fotos pouco consentâneas com as posições oficiais, era a coluna de opinião no jornal que foi apropriada para propaganda e defesa das posições oficiais e depois extinta, era a entrevista a um desalinhado. Ali para os lados da Av. Rodrigo Rodrigues há uns senhores que não dormem quando se trata de ver o que se escreve, o que se publica, o que se passa nas televisões ou nas rádios.

Quando o ano passado a Administração da TDM foi mudada, houve então quem suspeitasse que muito mais iria alterar-se. O facto de ter sido indicada como Presidente da Comissão Executiva uma antiga jornalista chinesa cuja impressão digital fora encontrada pela Polícia Judiciária numa carta anónima dirigida a um outro profissional já não augurava nada de bom. Se a isto se juntasse a nomeação de uma antiga polícia reformada para a Comissão Executiva, facilmente se atingiam quais seriam os objectivos que estariam por detrás dessas nomeações. Outro dos novos nomeados era um deputado da Assembleia Legislativa cuja proximidade ao poder foi aumentando à medida que cimentava a sua carreira.

Uma das primeiras medidas foi controlar o cumprimento dos horários dos jornalistas, fiscalizando os cartões de ponto e penalizando quaisquer atrasos mesmo que de apenas alguns minutos, introduzindo uma gestão burocratizada típica da função pública.

Depois foi a lembrança de que os prémios atribuídos a jornalistas da casa não lhes pertenciam e deveriam reverter para a equipa de produção, o que até seria compreensível não fosse dar-se o caso de já há anos essa orientação não ser cumprida.

Todavia, o que desta vez aconteceu é a todos os títulos revelador do clima que por aqui se vive e da forma como se encaram hoje "os direitos e liberdades dos habitantes e outros indivíduos em Macau, designadamente as liberdades pessoais, a liberdade de expressão, de imprensa, de reunião" e outras consagradas na Declaração Conjunta Luso-Chinesa de 1987 e na Lei Básica. Esta última refere expressamente no seu artigo 27.º que "os residentes de Macau gozam de liberdade de expressão, de imprensa, de edição, de associação, de reunião, de desfile e de manifestação, bem como do direito de organizar e participar em associações sindicais e greves".

Este é um artigo cujo cumprimento integral foi sempre adiado quanto à parte final e que agora cai em desuso quanto ao resto, pois que não só a Região continua até hoje carecida de regulamentação em matéria de direitos sindicais e exercício do direito de greve, não obstante as múltiplas tentativas que várias deputados do campo pró-democrático fizeram na Assembleia Legislativa, como as liberdades de reunião, desfile e manifestação têm vindo a degradar-se e são cada vez mais limitadas, o que ainda há dias era sublinhado pelo veterano deputado Ng Kuok Cheong numa entrevista à jornalista Diana do Mar, no canal rádio da TDM.

A este panorama, já de si nada brilhante, mas com o qual muitos se conformam para continuarem a receber os generosos subsídios governamentais e a publicidade paga das entidades oficias nas páginas dos seus jornais, evitando tratar alguns temas mais sensíveis como os relacionados com o Tibete, Xinjiang e Hong Kong numa perspectiva que fugisse ao discurso oficial, junta-se agora a pressão exercida sobre os jornalistas e directores de informação da TDM.

De acordo com as notícias que ontem começaram a circular e hoje confirmadas por alguns jornais diários, teve ontem lugar uma reunião urgente conduzida pela Administração da TDM com os jornalistas no sentido destes promoverem "o patriotismo e o amor à pátria" e de "não divulgarem informações ou opiniões contrárias às políticas do Governo Central".

Nos termos da notícia publicada esta manhã pelo Ponto Final, foi sublinhado que "a TDM é um órgão de divulgação de informação do Governo Central e da RAEM e que a estação deve divulgar as políticas do Executivo local expressas nas Linhas de Acção Governativa (LAG)". Os jornalistas foram ainda informados de "que a TDM deve divulgar o princípio "Um centro, Uma Plataforma, Uma Base", e que "a TDM apoia o princípio de que Hong Kong deve ser governada por patriotas", deixando o manual editorial de 2011 de estar em vigor, o que aconteceu "sem aviso prévio".

A notícia refere ainda que  "as indicações vieram da administração e que esta já era uma versão negociada pela direcção de informação dos canais portugueses com a comissão executiva". 

Até ao fecho da edição do referido jornal nem a presidente da Comissão Executiva da TDM se mostrou disponível para mais esclarecimentos ou respondeu ao email que nesse sentido lhe foi endereçado, nem o director de informação e programas dos canais portugueses, João Francisco Pinto, ou o director-adjunto de informação e programação portuguesa da TDM-Rádio Macau, Gilberto Lopes, confirmaram o conteúdo da reunião, o que não deixa de ser estranho atenta a gravidade das notícias divulgadas.

Quanto aos dois últimos há ainda mais um dado: as suas comissões de serviço foram renovadas por apenas seis meses, entre Abril e Setembro, ao contrário das habituais renovações por períodos anuais.

Para além de ser discutível o entendimento que hoje se tem na Região do que seja a liberdade de imprensa, e a forma como o poder político encara e controla a informação livre, profissional e responsável, não deixa de ser questionável se o papel dos jornalistas profissionais, no designado "segundo sistema", ou em qualquer outro, é o de divulgar e apoiar o discurso oficial, de apoiar os caminhos definidos para a governação de Hong Kong e censurar as notícias desagradáveis para os governos e que não se insiram nas suas políticas.

Se é certo que para alguns dos usuais "penduras" habituados a dobrar a cerviz tudo isto faz sentido, tendo mesmo começado há muito, alguns ainda no tempo da Administração portuguesa, e antes que lhes fosse "sugerido", a concretizarem políticas de informação "patrióticas" – muito embora tenham um discurso para Macau e outro para quando estão fora ou se referem ao que se passa em Portugal –, para quem queira manter a dignidade, a lucidez e o profissionalismo este será mais um rude golpe na liberdade de imprensa e no respeito pelos compromissos internacionais anteriormente assumidos e pelo modo de vida das gentes de Macau, provando-se de novo que não será pelo facto de alguns aumentarem o seu grau de acomodação e veneração ao poder político e económico que a pressão diminui ou desaparece.

A agenda está assim cada vez mais clara. O rumo foi definido e é diariamente sublinhado.

E como há dias alguém escrevia com acerto, passámos da fase das regiões administrativas especiais serem governadas pelas suas gentes, se é que o foram alguma vez, para uma governação por patriotas (ditos). Os resultados começam já a fazer-se sentir, sem que sequer se dê tempo à tinta para secar.

5 comentários

Comentar post