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Delito de Opinião

Liberdade de expressão oficial

José Meireles Graça, 31.03.22

Às pessoas que assinam esta proclamação cabem graus diferentes de responsabilidade na parte abominável da Academia portuguesa e da opinião publicada. Infelizmente, só assinaram vinte, decerto por urgência. Procurando, encontrar-se-iam mais umas centenas, ainda que seja duvidoso que fosse vista com bons olhos a assinatura de um anónimo que se desse a conhecer descrevendo-se como Fulano, comunista e entregador da Uber – aquilo é só artistas, em mais do que um sentido da palavra, intelectuais e gente de representação.

Os que conheço são entulho esquerdista, e os que não conheço tresandam à mesma proveniência: Está lá BSS, o conhecido sociólogo do Bloco imensamente prestigiado no Belize e acho que noutros países sul-americanos, incluindo até o Brasil, pelo menos dois escritores, ignoro se de romances ou bulas de medicamentos, gente do teatro, vários jornalistas e professores universitários, até mesmo militares – que Nosso Senhor lhes perdoe que eu, de generosidade, nem por isso.

Como não leio o Expresso por não carecer, para me abastecer de opiniões, de ler a tralha situacionista que por lá se publica, a declaração solene passar-me-ia ao lado não se desse o caso de seguir Vital Moreira, que repesca o exercício. Este Vital aprecio porque é um intelectual do PS, com o prestígio de um percurso político de peso e autonomia bastante para abundar em opiniões, e ser portanto um influente no pensamento político (peço desculpa) do partido, que todavia tem gente que lhe escapa à deletéria autoridade. E como o PS é hoje praticamente o país, a mim convém-me andar ao corrente do que vai naquelas cabeças, pela mesma razão pela qual um epidemiologista se interessa por mutações de vírus.

Vital, com abundância de pontos de exclamação e exageros retóricos que decerto serão considerados, nos cafés de Coimbra, um fino exercício de ironia, associa-se à carta aberta, ainda que não a assine porque, diz, “desde há muitos anos que decidi não alinhar em posições políticas coletivas, sempre seletivas e compromissórias, por descrença na sua efetividade, numa atitude de irredutível responsabilidade política individual. É por isso que tenho o Causa Nossa!”

Confesso: Não assinei porque ninguém me pediu (nem pediria, que raio haviam de pôr na profissão – industrial? Só se fosse dos grandes, e mesmo assim). Se bem que, a bem da verdade, deva dizer que, vendo as assinaturas dos promotores, recuaria com horror, ainda antes de ler – diz-me com quem andas, dir-te-ei quem és.

Depois de ler, mesmo assim, sugeriria alterações, nomeadamente estas:

Os signatários manifestam a sua admiração pelo povo ucraniano, que dá provas de que o sentimento nacional, que algumas instâncias internacionais gostariam de terraplanar, está vivo e é o cimento que leva cidadãos como nós (como nós porque são depositários dos valores que indistintamente designamos como os do Ocidente) a resistir heroicamente;

A invasão é uma manifestação intolerável de imperialismo e o seu sucesso seria uma derrota não apenas do Direito Internacional e da própria Ucrânia mas também do Ocidente no seu conjunto, o qual, sem ser beligerante, não ignora que é a sua maneira de estar no mundo que ali é também agredida;

A guerra justa é a da defesa perante um ataque injustificado, como é este, e pode ser também a prevenção de outras guerras. Uma vitória russa que não fosse de Pirro constituiria um sinal para outras potências que lançam olhos compridos sobre vizinhos que pretendem anexar.

Isto, ou coisa parecida, tinha de lá estar. Em contrapartida, é claro que haveria parágrafos inteiros para riscar. Quase todos, tal é o afã de “contextualização”, como se houvesse equivalência de razões entre uma parte e a outra.

Mas. Mas. A União Europeia não está em guerra, nem nenhum dos países que a constituem. E mesmo que seja devida à Ucrânia toda a solidariedade, que implica consequências e sacrifícios, não se vê de que forma é que os Ucranianos são ajudados se se suspenderem os Estados de Direito, como é o caso quando a liberdade de expressão da opinião é condicionada, ou quando cidadãos russos, pelo facto de o serem, e sem que sequer se lhes estabeleçam acusações de simpatia com a invasão, são tratados como personae non gratae.

Lamento, lamento muito, que me visse obrigado a deixar ficar estes dois parágrafos:

Repudiamos que se tenha aceitado, sem qualquer espírito critico nem sentido de soberania, uma diretiva da União Europeia que é contrária à Constituição Portuguesa, promovendo a flagrante e grosseira violação dos direitos de liberdade de expressão e informação expresso no artigo 37 - e o de liberdade de imprensa referido no artigo 38.

Assiste-se por toda a Europa a uma “censura necessária” onde, à revelia de todos os proclamados valores ocidentais, se afastam desportistas, fecham exposições, retiram temporadas teatrais, despedem-se encenadores, professores e maestros, suspendem concertos e ballets, cursos universitários de literatura e ciclos de cinema.

Costuma dizer-se que no melhor pano cai a nódoa. Será o caso de dizer aqui que há panos sujos com zonas imaculadas. Vá lá que não falta quem, na parte escorreita do espectro político, que não é esta, perceba que também nisto se joga, com diferença de graus e de valores, a mesma repugnante deriva que já infectou a Covid: há uma verdade oficial, definida pelas autoridades, e quem não a seguir inteiramente é, num caso, negacionista, e no outro haverá o bem-pensismo oficial de inventar a palavra adequada um dia destes.

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