Ler (33)
Quando o jornalismo se torna literatura
Kim Kardashian: «lábios de embuste»
Já falei aqui sobre o meu crescente interesse pela literatura espanhola. Ao ponto de vários dos meus romances ou novelas favoritos dos últimos cem anos serem de autores do país vizinho. Estes, por exemplo: Tirano Banderas (Ramón de Valle-Inclán), Nada (Carmen Laforet), Os Mares do Sul (Manuel Vásquez Montalbán), Coração Tão Branco (Javier Marías), Instruções Para Salvar o Mundo (Rosa Montero), Pátria (Fernando Aramburu) e Os Teus Passos nas Escadas (Antonio Muñoz Molina).
Este interesse estende-se aos colunistas da imprensa. Pelo mais óbvio dos motivos: escreve-se muito bem nos jornais espanhóis. São peças de literatura as crónicas, as reportagens, até os editoriais. Abundam os escritores que recusam enclausurar-se em torres de marfim, molhando os pés e exercitando a pena em colunas quotidianas onde exibem a sua prosa inconfundível, marcada pelo "ruído da rua" (título da coluna de Raúl del Pozo no El Mundo). E não faltam jornalistas que em nada se distinguem dos melhores prosadores contemporâneos de língua castelhana: Pedro Cuartango, Lucía Méndez, Ignacio Camacho, Jorge Bustos, Manuel Jabois, Emilia Landaluce, José Peláez, Maite Rico, Daniel Gascón, Rebeca Argudo. Falei de alguns aqui, em 2017, quando o El Mundo deixou de distribuir edição impressa em Portugal - decisão felizmente revertida algum tempo depois.
O melhor colunista é aquele que não se limita a emitir opinião: consegue criar metáforas e expressões tão sugestivas que se incorporam na linguagem comum. Tivemos nós também um deles, o melhor de todos: Vasco Pulido Valente, que cunhou o termo geringonça, aplicado à solução política que António Costa encabeçou entre 2015 e 2019. Mas, de modo geral, quem escreve na imprensa portuguesa perde fatalmente na comparação com Espanha. Mesmo nos temas mais fúteis.
Acabo de ler, no ABC de ontem, uma crónica de Ángel Antonio Herrera sobre a "influenciadora" norte-americana Kim Kardashian - talvez uma das mulheres mais fotografadas do mundo. Descreve-a com aquela linguagem castiça que tanto aprecio entre os espanhóis dizendo que ela tem «lábios de embuste». Espantosa expressão, tão inesperada e sugestiva.
Eis um caso concreto em que o jornalismo se transforma em literatura, libertando-se do estéril lugar-comum. Quem gosta de ler agradece. E que não restem dúvidas: continuamos a ser muitos.