Ler (27)
Fechado um livro, saímos dele mais intensos e às vezes até mais felizes
Os livros estão em movimento perpétuo. Como todos nós, afinal.
Os livros levam-nos onde nenhum meio de transporte nos conduz. Seja de barco, seja de comboio, seja de avião.
Nos livros viajamos no espaço e no tempo. Conhecemos novos mundos, rasgamos horizontes, galgamos fronteiras reais ou imaginárias, conhecemos uma infinidade de pessoas das mais diversas proveniências.
Os livros são os mais fiéis e pacientes companheiros de percurso: nunca nos deixam sós.
Com eles subimos um rio, nas profundezas do Congo, navegando com o capitão Charles Marlow. Perseguimos uma baleia a bordo de um navio comandado pelo obsessivo capitão Ahab. Fazemos a pescaria da nossa vida logo reduzida a quase nada, ombro a ombro com o velho Santiago ao largo de Cuba.
De manhã deambulamos pelas margens do vasto delta do Mississípi com Huckleberry Finn, à tarde tomamos chá num Verão londrino com Clarissa Dalloway e subimos o Chiado com João da Ega, ao pôr do sol jantamos na mansão de Jay Gatsby.
Página a página, testemunhamos a paixão desmedida que une Sarah Miles a Maurice Bendrix nos escombros de Londres durante a guerra. Caminhamos com Mersault sob um sol escaldante numa praia argelina ou sentimos o frio trespassar-nos a pele e os ossos no campo de concentração siberiano onde Ivan Denissovitch vegeta.
Com os livros viajamos em calhambeques de camponeses esfomeados como o que levou -- e levará até aos confins dos séculos graças à imortalidade da literatura -- a família de Tom Joad do Oklahoma para a Califórnia.
Seguimos o Malhadinhas pelas veredas sinuosas das serras beirãs.
Brincamos em Salvador como os capitães da areia, que chegam a homens sem nunca serem meninos.
Descemos com outro capitão, chamado Nemo, às profundezas submarinas.
Arrastamo-nos nas sórdidas vielas da Londres vitoriana com Oliver Twist. Ou nas faiscantes festas novaiorquinas onde Holly Golighly brilha para a eternidade.
Exercemos medicina, como Jivago. Ou a advocacia, como Atticus Finch. Ou o jornalismo, como Santiago Zavala, o Zavalita.
Ou fazemos do segredo a nossa profissão, imitando George Smiley.
Enquanto leio, chamo-me D' Artagnan e sou um galante capitão ao serviço da rainha. Cavalgo como Ivanhoe à conquista do coração de Lady Rowena. Transfiguro-me em Fabrizio Del Dongo, cruzando-me com Napoleão em Waterloo. E respondo pelo nome de Sandokan quando navego nos mares da Malásia.
Torno-me Winston Smith e vivo num sistema totalitário. Prendem-me e eu, Joseph K, não faço a menor ideia de qual será o motivo - ter-me-ão confundido com Raskolnikov?
Mas mesmo preso eis-me livre nos livros, Phileas Fogg percorrendo o globo em 80 dias, rumando ao planeta do Principezinho.
Matando como Tom Ripley, morrendo como Robert Jordan. Ou como o coronel Aureliano Buendía, recordando perante o pelotão de fuzilamento a tarde remota em que o pai o levou a conhecer o gelo.
Diletante como Dorian Gray. Solitário como Robinson Crusoe, solidário como Jean Valjean.
Apaixonado à primeira vista, às primeiras letras, por Margarida Dulmo.
Mario Vargas Llosa tem razão: fechado um livro, saímos dele «mais intensos, mais ricos, mais complexos, mais felizes, mais lúcidos», enquanto regressamos à «constrangida rotina da vida real».
Exactamente como me sinto agora.