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Delito de Opinião

Ler (2)

Pedro Correia, 28.05.22

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É sempre um momento agradável. Quando abro um novo livro, já o anterior ficou para trás. Faço questão, quase sempre, que seja de um género muito diferente. Para que as memórias de um e outro não se confundam.

Mas desta vez encalhei no primeiro parágrafo. A obra seleccionada foi Último Olhar, o mais recente romance de Miguel Sousa Tavares. Na esperança de que atenue tantas asneiras que tenho lido dele no Expresso sobre a agressão russa à Ucrânia.

Vicio de jornalista que passou largos anos a corrigir prosa alheia: leio sempre de lápis na mão. É uma forma de dialogar com o autor. Desta vez fiz cinco anotações imediatas no texto. Coisas que me pareceram incorrectas e deviam ter sido alteradas por um editor rigoroso.

Os livros de Sousa Tavares padecem deste mal: Equador, romance com méritos, tem cerca de 150 páginas em excesso e pelo menos um longo capítulo que está ali a mais. Imagino que ninguém na editora ousou beliscar o ego do autor, sugerindo-lhe alterações profundas no original. Foi pena. Teria sido melhor para todos. Incluindo os leitores.

 

Vamos lá às modificações que eu faria se fosse editor do romancista Sousa Tavares. Estão aqui assinaladas.

A primeira resulta de uma sintaxe que se vai generalizando por óbvia influência brasileira, derivada da escrita norte-americana. Refiro-me à mania de polvilhar frases com pronomes que no português europeu são desnecessários por estarem subentendidos. É o caso deste possessivo: se «consultou o relógio de pulso», só podia ser o dele. Aquele seu está ali a mais.

Segunda: o coloquialismo é que, redundante na escrita literária, aceita-se apenas se estivermos a reproduzir discurso oral. Não é o caso. Merecia o risco que lhe passei em cima. Já recomendava o grande Georges Simenon: «Escrever é cortar.»

Terceira: erro elementar de lógica: se são «cinco em ponto da tarde», em aparente paráfrase ao verso de Lorca, aquele mais ou menos inserido na mesma frase perde sentido. Uma coisa não cola com a outra.

Quarta: outra redundância, esta ainda mais escusada. A tal caravana de ambulâncias trazia a bordo, obviamente. Não iria transportar fora de bordo fosse lá o que fosse. Algo similar ao célebre «cai chuva lá fora» em que tropeço com frequência. Só admissível nos casos em que possa chover dentro de portas.

Quinta e última: o vírus da covid-19. Não entendo aquela preposição. Outra frase com gordura em excesso. E já nem discuto a súbita alteração de género, transitando do vírus masculino para o acrónimo de importação inglesa tornado feminino. «O vírus covid-19» bastaria. Mesmo numa Espanha «agonizante de pavor>.

 

Cinco incorrecções num parágrafo inicial são fatais, segundo o meu critério. Algo só possível porque os editores literários, quase sem excepção, recusam hoje alterar o material que lhes chega de autores consagrados. Noutros países, como os EUA, as provas são observadas e anotadas com minúcia. Longos excertos cortados, abundantes pontos de interrogação e comentários de todo o tipo ajudam o autor a melhorar o seu trabalho, chame-se ele como se chamar.

Levaram-me a fechar o livro, que aguardará nova oportunidade. Hei-de voltar a ele. Mas outros já lhe passaram à frente.

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