Ler (16)
Um para o Inverno, outro para o Verão
Não sei se convosco acontece o mesmo. Comigo é assim: chego a 1 de Janeiro sempre com um plano de leituras. Numa espécie de desafio comigo próprio.
Houve um ano em que me propus ler quase em exclusivo escritores galardoados com o Prémio Nobel. Outro, em que só li obras de autores portugueses publicadas entre 1901 e 2000. Mais recentemente, e com relativo sucesso, imaginei-me a eleger o melhor livro de ficção estrangeira de todos os anos do século XX - o que me forçou a canalizar as leituras nesse sentido, a partir de tal meta imaginária, e quase consegui concretizar o meu propósito (faltam-me três ou quatro anos).
De caminho, fui fazendo descobertas de títulos e até de autores que jamais havia lido ou de todo desconhecia. Tenho na mesa de cabeceira, por exemplo, um candidato a melhor livro de 1923: A Consciência de Zeno, de Italo Svevo. Hoje comecei o dia - e o ano - a ler Jó, de Joseph Roth, possível melhor livro de 1930. É sempre assim: umas obras puxam outras, no seu conjunto vão compondo um quebra-cabeça imaginário.
Questão de método. Ajuda a concentrar, não a dispersar.
Para 2023, o meu objectivo é mais modesto. Contentar-me-ei se concretizar este plano muito sucinto: só tenho dois livros na minha lista. É verdade que ambos se desdobram em vários volumes. Mas são marcos da literatura mundial que até agora me passaram ao lado: Guerra e Paz (vi o filme mas não li o livro) e Em Busca do Tempo Perdido.
Com prioridade absoluta na minha agenda. E até já os dividi por estações do ano: o agreste Tolstoi para o Inverno, o lânguido Proust para o Verão.
Alimento há muito a convicção de que existem obras literárias adequadas a cada ciclo anual: é absurdo lermos O Doutor Jivago, ambientado em extensas estepes geladas, no sufocante estio de Agosto; ou O Deserto dos Tártaros, que decorre em cenário de tórrido calor, à lareira do Inverno. Tal como existem livros próprios para ler de dia ou de noite. Tal como existem livros adequados a transportar connosco e outros que devem permanecer em casa.
Cá os tenho, portanto. Prioridade absoluta para Guerra e Paz: três volumes da extinta Editorial Inquérito, com tradução do filósofo José Marinho. Seguem-se - quando o calor apertar - os seis volumes do Tempo Perdido, com chancela Relógio d'Água e tradução do poeta Pedro Tamen, há pouco falecido. Neste caso, confesso, parto apenas com a ambição de ler os dois primeiros, aqueles que realmente me interessam: "Do Lado de Swann" e "À Sombra das Raparigas em Flor".
Será preciso tempo: meia hora diária, pelo menos. E concentração - dom cada vez mais raro e precioso. E o tal método. Sem aquele péssimo hábito muito português que leva tantos a dizer «só leio quando me apetece» ou «só costumo ler quando preciso de relaxar» enquanto se dispersam em inutilidades sem préstimo algum. E relegam o nosso país para um dos piores índices de leitura no continente a que pertencemos: 61% não abriram um livro em 2022.
Números que deviam envergonhar-nos enquanto europeus. Sou capaz de apostar, porém, que alguns por cá até se riem destas estatísticas. Prestam tributo à ignorância e fazem gala disso.